Acordo de repente! Sinto-me mal, não sei o que aconteceu, o que tenho... Arrasto-me pela cama fora, chego à casa de banho, sinto uma leve névoa a passar nos meus olhos, umas dores de cabeça estonteantes... Nunca me senti assim! Paro para olhar ao espelho. E foi a última coisa de que me lembro...
Depois, quando abri novamente os olhos, tive um déja vu da situação, do lugar, daquela cama onde me encontrava...
Vejo pessoas a andar de um lado para o outro, desenfreadamente... Parece que a vida para elas vai acabar daqui a um minuto. E eu nesta cama sem me conseguir mover, parece que sou um estranho no meu próprio corpo.
Todos olhavam para mim, não sabia o que significava, longe de saber a verdade que viria a seguir. Até que alguém vem ter comigo, um homem de bata branca. Parecia ter à volta de quarenta anos. Os primeiros cabelos brancos começavam a aparecer, os olhos muitos abertos... Tinha feições orientais, pele branca como a neve, sobrancelhas cerradas, e trazia consigo um estetoscópio. Andava lentamente, como se a idade já lhe pesasse, e falava pausadamente parecendo que o ar lhe ia faltar a qualquer momento. Apresentou-se como sendo médico e seu nome José Lai Hung-seng, Tinha ascendência macaense, mas tinha nascido em Portugal. Parecia que tentava encontrar as palavras certas para uma situação indelicada, de vez em quando notava-se algum nervosismo no seu rosto. A conversa banal acabou quando chegou uma enfermeira dizendo-lhe que já estava tudo preparado. Seu ar tornou-se ainda mais sério, virou-se para mim e disse:
- Vai ter que fazer umas análises e uns exames para sabermos realmente o que lhe aconteceu. Tenho algumas ideias, mas para já prefiro não comentar nada pois não tenho a certeza.
Foi a primeira vez que me alarmei na minha vida. E comecei a lembrar-me daquela manhã, da fadiga, do que me trouxe ao hospital. Começava a temer o pior, o que poderia dali advir... Fumava três maços de cigarros por dia, bebia descontroladamente. E nem o casamento, nem a nascença dos meus primeiros filhos fizeram abrandar o ritmo. Mal via Joana (minha mulher), João e Pedro ( meus dois filhos). O meu trabalho não permitia, era director financeiro de uma multinacional, trabalhava desde as nove da manhã à meia-noite quando não era preciso prolongar mais horas! Fins-de-semana, há muito tempo que não sabia o que eram.
Fui fazer os exames e as análises. Quando voltei para a minha cama, lá estavam eles, meus filhos e a minha mulher. Com ar preocupado, os meus filhos sorriram quando me viram, não sei descrever o que senti naquele momento. Tão genuíno o sorriso deles, tão terno... Vieram-me as lágrimas aos olhos, apetecia-me levantar da cadeira de rodas e ir a correr para os abraçar! Mas não podia, estava fraco demais. Até o médico vir com os resultados pareceu uma eternidade, um inferno, na minha tentativa de manter a calma para eles não perceberem nada. Mas Joana sabia que algo não estava bem, eu não era de ficar doente. E para ter que vir para o hospital tinha de estar muito mal.
Oiço um toc, toc na porta, viro a cara, vejo o médico que desta vez não vinha sozinho. Trazia consigo uns colegas. Mais nervoso fiquei. Perguntou-me se não me importava que falasse com Joana em particular. Respondi que não, começava a suar, sorrindo, tentando esforçar-me o mais possível para os meus filhos não perceberem o que estava acontecer. Joana saiu para falar com o Sr. Doutor José e os seus colegas... Só consegui ouvir sussurros, nada demais. Pareceu uma vida, foi a maior espera que tive de suportar. Quando Joana voltou, vinha em lágrimas! Percebi então que tinha acontecido o que mais temia. Algo mesmo muito mau... Os meus filhos perguntavam, inquietos, o que se passava... Joana, para disfarçar, respondeu que um cabelo tinha entrado para os olhos, e provocado comichão. “A mãe coçou e fez chorar”. Quando chegou ao pé de mim, abraçou-me com tal força que me ia sufocando e sussurrou-me ao ouvido um “ não quero que morras”...
Começaram a cair-me as lágrimas, não aguentava mais.
Passados uns minutos, eles foram-se embora e entrou o Doutor José outra vez, mas desta vez sozinho. Virei-me para ele e pedi-lhe com prontidão que não me escondesse nada:
- Sei que é grave o suficiente, e que corro risco de vida. Por isso, não precisa de falinhas mansas.
As minhas palavras surpreenderam-no de tal forma que, por momentos, ficou com a boca aberta sem saber o que dizer. Depois voltou a si, e disse:
- Você tem cancro nos pulmões e é maligno. Mas a sua sorte é que foi detectado cedo e, por isso, as suas hipóteses ainda são altas. Fazendo radioterapia, e quimioterapia...
Mas eu queria saber realmente as minhas verdadeiras hipóteses de sobreviver e perguntei-lho. Ao que me respondeu “50%”. Voltei-me para ele e comecei a rir: “50%? Diz grandes hipóteses?” Explicou-me, então, que há quem chegue e tenha a sorte de ter a morte certa... Por isso, aconselhou-me a que desse graças a Deus por ainda ter tantas hipóteses!
Nessa noite, as perguntas pairavam no ar. Como se pesadelos se tratassem, nas minhas insónias repetiam-se, sem cessar, as palavras do Doutor José:” você tem cancro nos pulmões, maligno. Mas dê graças a Deus tem 50% de hipóteses de se salvar...” Como queria que ficasse contente com tais acontecimentos? Porque tinha de me acontecer a mim? Que mal fiz?
Detesto tudo e toda gente! Odeio-me! Como é possível? Se Deus existe, tem de ser vingança dele. Ele odeia-me com certeza! Tinha o mundo a meus pés, mas ele tirou-me o tapete do chão, fazendo-me cair e magoar-me muito. Odeio-o com todas as minhas forças! Vou odiá-lo sempre, enquanto viver!
Na manhã seguinte, fui para casa. A partir daí, começaram aqueles olhares de pena... Ouvia a sussurrar, “é tão novo não merecia isso...”. Ou então: “oh coitado! Tenho tanta pena dele!” Mas só sabem intrometer-se na vida dos outros? cuidem das vossas, não me chateiem! E apetecia-me gritar isso bem alto, mas apenas suspirava e dizia um “pois”, silêncio que demonstrava todo o meu desprezo por essas pessoas.
Começaram as piores quatro semanas da minha vida. Parecia que estava num campo de concentração. Apetecia o suicídio, as dores eram imensas, a perda do cabelo, tudo... O ambiente que se tornou pesado em casa...
Estava a ficar farto, em cada dia que passava, aparecia um novo tormento. Mas os médicos diziam que estava a melhorar... Parecia que morria por dentro!
Fica a pergunta no ar: será que vale a pena viver assim?