Textos -> Surrealistas : 

O papagaio

 
 
Sentou-se no sofá das palavras. Pediu uma água dupla, com três cubos de gelo. Sem açúcar.

Deixou-se embriagar até adverbiar soluços e silêncios. Acomodou-se ao sítio, roçando as firmes nádegas da esquerda para a direita e da direita para baixo, afundando-se mais um pouco em cada aconchego. Bebeu mais e mais. O barman, sentado em cima de um papagaio, que cantava o último êxito gravado em CD, LP e personalidade magnética, servia-o com um sorriso nas costas.

Seguiram-se risadas e apostas. Sentindo um suave conforto nas ancas e nos flancos do seu firme abdómen, o indivíduo do sofá perguntou:

- Que anda você mesmo a fazer aqui, se no fim da noite ninguém lhe paga?

O barman não respondeu. O papagaio tinha uma bolacha no bico. Voou em ângulos diversos e confusos, até aterrar na cabeça do seu compadre.

O sofá pedia mais e mais. O absorvente de água e palavras que tinha o nome de habitante de sofá afundou-se mais e mais, até pedir uma água dupla sem gelo, de tanto frio que fazia. Sorveu as últimas gotas enquanto a cabeça se afundava até o sofá se fechar cuidadosamente sobre si mesmo. O sofá das palavras.

Restou um barman e um papagaio, que afinal era um pica-pau. Roía tudo, até os miolos de quem já nem pensava para servir bebidas, excepto o sofá.

Há quem diga que o fazia por divertimento, há quem diga que o fazia por vingança. Eu só sei que aquele papagaio falava muito.

 
Autor
AntonioCarvalho
 
Texto
Data
Leituras
1278
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 02/08/2009 16:27  Atualizado: 02/08/2009 16:27
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: O papagaio p/ antóniocarvalho
...acho que me identifico um bocadinho com esse papagaio
beijo surreal...que é como quem diz:beijo dado por uma boca sem dentes sentada numa janela atrevida e torta,assobiando a quem passa perante o olhar desconfiado de um gato cego pintado de verde.