Faz tanto tempo que Manoel Bandeira escreveu aquele poema, O bicho. Sempre que o leio fico chocada com a cena, especialmente com a exclamação do poeta “o bicho, meus Deus! Era um homem!”. Não importa quantas vezes eu o ler, será sempre assim. Imagine caro leitor, o que senti quando vi a cena real. Fiquei letargiada. Moro nesta cidade há muito tempo e ainda consigo me chocar. Não com a politicagem, não com o descaso, com as promessas mirabolantes em época de campanha eleitoral. Não são as paredes pendentes de uma escola pública, nem a falta de professores que deixa centenas de estudantes sem aula durante cada ano letivo o que mais me choca. Com isso já aprendi a racionalizar, sei que se me esforçar em ser uma pessoa diferente e fizer melhor, já me sentirei mais tranqüila, sei que uma andorinha só não faz verão, mas serei uma a tentar e como disse meu grande ídolo, Vincent Van Gogh, ninguém está sozinho na crença de que as coisas são verdadeiras.
No entanto, ainda me choco com o coração empedernido das pessoas. Foi há muito tempo que me defrontei com essa verdade, o homem perdeu a capacidade de Amar. Sim, pelo menos grande parte dos que cruzaram o meu caminho. Lembro bem, a primeira vez que atentei para o fato, foi no ano de 2001. Parecia que alguém havia resolvido encenar o poema do Bandeira, que havia uma câmera escondida em algum lugar e gravavam. Sim, tentei me convencer, era uma gravação, todos em volta estavam sabendo. O que ocorreu foi o seguinte: Estava eu novamente naquele ônibus das sete horas que me levava para a escola todos os dias. Existe aqui tal Avenida João pessoa que todos sabem é tradição haver engarrafamentos irritantes. Sempre no início daquela avenida, no sentido Filipinho-João Paulo. Foi bem nesse ponto que o ônibus parou. Eu sou uma observadora do meio que me rodeia. Gosto de ver para me inspirar. Num dos lados da avenida, um caminhão descarregava frutas-do-conde, centenas, um bocado caía e escorregava para o esgoto, misturavam-se a tomates podres, repolhos enegrecidos... Um grande desperdício que foi mais chocante quando ao acompanhar o deslizar de uma daquelas frutas que caíam do caminhão vi a cena, como se fora um flash back: o homem era jovem, trinta e cinco anos no máximo, maltrapilho, o rosto coberto por uma barba consideravelmente grande, ele estava próximo a um poste remexendo nas sacolas postas ao pé da calçada. Ele remexia e enchia a mão de algo viscoso, que, perdoem-me pela dureza das palavras, sério, sinto um nó na garganta só em lembrar e entendo a exclamação do Bandeira, eu entendo porque eu a repeti, sem perceber, sem intenção porque nesses momentos incongruentes não podemos pedir respostas senão ao Criador que tudo sabe sobre a sua criatura, “meus Deus!” Eu dizia e implorava mentalmente para ele não colocar aquilo na boca, mas ele o colocou, com gosto, com vontade e apesar da pressa com que fazia aquilo, era preciso nas abocanhadas, para que nenhum grão, ou gota daquela mistura vermelho-negro-branco-amarelo de tomates podres, repolhos, batatas e sei lá mais o que caísse, parecia um vômito! Nunca me recuperei daquela cena. Porque mais chocante que ela foi o que veio depois. Olhei para os lados, como que pedindo socorro àquelas pessoas, “alguém o ajude”, “alguém faça alguma coisa”, tinha uma lanchonete ali, a mulher estava fritando pastéis, sei lá, alguém ajudasse o seu próximo! Mas o que vi, não foram olhares solidários aos meus apelos, foi escárnio, repulsa, uma verdadeira negação de qualquer sentido de ética cristã. Foi nesse momento que senti vontade de descer e fazer aquilo que pensei, mas não o fiz, tive medo do homem que já estava tão exposto, tão embrutecido com sua indigência e que ele voltasse sua revolta contra minha atitude, pensasse que como os outros eu estivesse escarnecendo do seu sofrimento. E o ônibus se foi, e meu coração adquiriu peso de chumbo, pensei naquela pobre criatura por muito tempo, fiz um conto onde ele aparecia só que não tive coragem de usar palavras duras, fui poética, falsa. Porque sabia da minha covardia e que havia ajudado aquelas pessoas a aumentar a fome daquele homem. Eu pensei que era boa, mas descobri que era uma menina má!
E hoje retomo aquela imagem que guardei na memória, na última gaveta para que não mais me perturbasse. E se hoje a trago de volta é porque aconteceu de novo. Não sou ingênua e sei que isso acontece sempre nas grandes cidades, mas não foi a fome, foi a atitude, ou a falta dela, uma coisa é alguém falar, a televisão mostrar, nada substitui a impressão pessoal, o testemunho vivo. Hoje, eu estava no ônibus, a caminho da universidade, o mesmo engarrafamento, mas em outro logradouro. Perto de um bar, ainda com alguns convivas da farra da madrugada sentados, conversando animadamente, os vendedores lavando louças, limpando a calçada, o sol das sete e meia brilhando já quente, as pessoas iam e vinham, passavam normalmente, paravam e continuavam. Um homem caído no chão. Cabeludo, usava uma bermuda suja, estático no chão, a respiração ondulada do sono, ou bebedeira. Mas não quero discutir isso, quero falar da apatia daqueles que iam e vinham, ninguém se incomodava com aquela presença inadequada. Era um ser humano, num momento de fraqueza, outra vez, só que agora não havia escárnio, não havia nada. Era corriqueiro, banal.
E foi assim que cheguei à conclusão que a vida dos homens não vale nada. Nada, é algo pelo que não vale mais a pena lutar, proteger. Estes são os exemplos, e agora uso aquela palavra que detesto_ corriqueiro. É verdade, as pessoas não têm mais a preocupação nem com as aparências. O “último samaritano” deixou o mundo há mais de dois mil anos, habita as páginas do evangelho. E Paulo disse que o mais importante que a fé, ou a sabedoria era o Amor. Onde está o Amor? Por que, de onde vem tanta indiferença para com o próximo? Será, meu Deus, que o dinheiro, a preocupação com a sobrevivência, a vantagem de ser o melhor, de estar bem colocado matou a nossa capacidade de Amar? Não é apenas ignorando um bêbado ou um indigente na rua que demonstramos a nossa falta de Amor. São em pequenas coisas, é negar a alguém uma informação por medo da concorrência, é se escusar de fazer sua tarefa porque tem sempre um “trouxa” que vai fazê-la. É assim que começa, nas pequenas coisas, e vai num crescendo. Toda vez que me omito lembro-me daquele homem, e que eu posso ter sido um de seus possíveis assassinos, porque ele não deve ter sobrevivido já se passaram sete anos, é física, química, o corpo precisa ser alimentado, não só de pão, mas de idéias, e aquele homem não teve dos seus próximos nem um, nem outra. Drummond perguntou o que pode uma criatura senão entre criaturas amar, e eu respondo, podemos virar os olhos para o outro lado e continuar em frente, afinal o que importa sou eu, eu, se me esforço mereço, quem não faz nada tem o que merece.
Sim poetas, assim caminha a humanidade, empedernida, seca sequiosa de Amor porque ele está ficando raro, muito raro.
Não podemos matá-lo, porque independente de religião, ele é Deus, o Dom Supremo do nosso criador, a resposta irrefutável de que não podemos negar sua existência, é o combustível de nossas almas. Pergunto por que as pessoas não conseguem mais ser felizes apesar do mundo oferecer tantas oportunidades de felicidade. Não conseguimos mais Amar. Estamos entre criaturas como nós e nos recusamos a amá-las!
Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!