Fora uma criança solitária. Sem amigos, sem irmãos, os pais sempre ocupados. Aprendera cedo a ler, e lia de tudo, como se diz por ai, era uma traça por livros!
A imaginação era fértil. Tudo que vinha aos olhos virava um personagem, uma frase, uma canção tornava-se um enredo. Por isso amava tanto suas bonecas, porque elas possuiam uma vida, e ela era a dona das suas vidas.
Como toda criança solitária tinha uma inclinação à melancolia, ao mórbido. Sem que os pais soubessem, assistia a filmes trash pela fresta da porta ou escondida nas sombras da sala quando papai-e quase sempre isso acontecia-dormia de boca aberta no sofá.
Quando ganhava uma boneca nova, achava as outras mais feias, escolhia uma e a esta tudo passava a ser negado. A novata, mais bonita, mais esperta roubava-lhe emprego, namorado e título de primeira da turma, a "feiosa" geralmente acabava vítima de um assassino, com uma faca ensaguêntada, às vezes perdia a cabeça, um braço, as pernas, às vezes seus cabelos eram cortados e a boneca ia ao necrotério, o fundo da gaveta, longe da prateleira, da luz, das histórias, era a morte. O fim inevitável de todas elas.
Naquele verão- muito chuvoso e sempre escuro-vovó veio visitar a filha e a netinha. Vovó muito religiosa, nunca levantava sem rezar o terço, nem voltava para a cama sem rezar outro. Estava sempre se benzendo e ralhando cada vez que ouvia um palavrão.
Mariana tinha medo da vovó, achava-a velha demais e aquilo de ficar rezando direto...Mas cada grito que recebera dela toda vez que ia brincar com suas bonecas era o que a menina de dez anos mais odiava: "- Mariana não corta o cabelo da pobre! Tu qué boneca só pra istruir a coitada! Menina danada larga essa tesoura, se tu não qué mais dá pra quem qué, ficar acabando com uma boneca tão bonita!".
Vovó dormia sempre antes do sol de pôr, mas naquele dia, estava com a bexiga presa e ainda estava acordada. Mariana brincava num canto da sala, tinha assistido um filme à tarde sobre um casal separado pela magia, durante o dia ela virava águia e de noite ele era lobo. A menina estava lá dando uma outra versão à estória quando ouviu a voz da velha rabujenta.
-Mariana! Tu tem juízo coisa sem miolo! Num pode brincar de noite, olha que quando tu for dormir, essas bonecas vão querer brincar contigo. Já pensou numa delas quebrando tua perna, cortando teu cabelo...à noite os espíritos do mal entram no corpo das bonecas e elas ficam malvadas, se você não deixa elas descansarem elas vêm te pegar!
Mariana não queria saber. A brincadeira estava tão boa!
-Deixa está bichinha... Depois não vai me acordar pedindo ajuda quando tuas bonecas forem assombrar teus sonhos!
Duas noites Mariana ouviu aquela ladainha, mas não achava justo. Só tinha suas bonecas e ninguém lhe tiraria isso!
Nunca fizera tanto frio como naquela noite. Mariana tinha a impressão que o céu estava caíndo. A luz do abaju apagou, não se ouvia mais o som do motor da geladeira. A energia fora cortada, na certa pelo temporal.
Aconchegou-se mais no lençol quando ouviu um movimento da gaveta se abrindo. Depois houve silêncio, mas então algo começou a rastejar em cima dela. Sentiu medo, pensou naquelas aranhas peludas que entravam nas casas em dias chuvosos, fugindo do frio. Então a coisa entrou por baixo do lençol e rastejou em direção da sua cabeça. Mariana sentiu vontade de gritar, abriu a boca mas a voz foi impedida de sair, não conseguia mais abrir a boca, parecia que fora colada com cola instantanea. O coração bateu mais acelerado, o peito doia como se estivesse sendo martelado por dentro. Sentiu algo pequeno, mas cujo impacto fora forte de encontro ao rosto e ardeu. Os olhos arregalados de Mariana não queriam ver, mas aquela mão pequena continuou a esbofetea-la. Não havia nenhum pensamento na cabeça de Mariana, não havia imagens, só o pânico, o medo sufocante, lá fora a tempestade aumentava, mas ali, em sua cama a temperatura estava alta, quente como a chapa que sua mãe usava para fritar hamburguers. Mas o pesadelo só estava no início. A energia voltou, e o que havia à frente de seus olhos era muito pior que qualquer filme de terror que já vira.
Suas bonecas, todas elas, quebradas, inteiras, novas, velhas estavam sobre ela, os seus olhares não eram mais doces, mais malignos.
-Oi mamãe, vamos brincar?
Era Josefine, sua primeira boneca a ir ao "necrotério", a cabeça careca pendia para o lado, a boneca fez um muxoxo e começou a chorar tristemente.
-Mamãe! Você não gosta mais de mim! Sua bruxa, você me machucou!
Uma boneca Barbie médica que Mariana chamava de Helena, aproximou-se e puxou-lhe a orelha.
-Menina ~´a! ai, ai, ai! Você não podia ter machucado sua filhinha, você não sabe o que acontece com as mães malvadas?
Mariana balançou cabeça negando assustada, as lágrimas correndo, o pânico paralizando suas pernas e face.
-Filhos ama suas mães!
-Mamãe, você não me ama?!
-Por que mamãe?! Por quê?! Nós te amamos!!
Todas as bonecas com suas vozes pareciam lamuriar. Então, Mariana pensou que ficaria surda se continuasse com aquele barulho nos seus ouvidos.
-Não! Brinca com a gente mamãe!- As bonecas aproximaram-se mais para o rosto dela, agarravam-se aos seu pescoço, quase enforcando-a. "mamãe...mamãe!".
A boneca médica subiu em algumas das outras bonecas, o olhar maligno e sibilou em voz de bruxa.
-Diga que você nos ama, mamãe! Diga, vai!
As bonecas a olharam em expectativa, as Mariana estava paralizada de terror. Nem conseguia mexer os lábios.
A expressão nos rostos de plástico tornaram-se perversas, algumas agarravam-lhe as orelhas, outras os cabelos Helena sorrindo docemente apresentou-lhe uma tesoura.
-Então mamãe, vamos brincar de cabelereiro?
'Brincar!" 'Brinca comigo!" "Vamos tomar chá?".
Um líquido foi despejado na sua boca em sguida veio a sensação d afogamento, o desfalecimento e o desepero por oxigênio!
Mariana abriu os olhos suada, o lençol envolto aos pescoço. Respirou violentamente, fora só um pesadelo, a falta de ar era devido ao lençol. Institivamente a menina olhou para aquela gaveta. O grito que escapou da garganta era suficiente para acordar todo o bairro, a gaveta estava aberta e lá de dentro uma cabeça ,esfolada, de boneca sorria malevolamente para ela.
-Olá mamãe, vamos brincar um pouco?
Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!