Ali, sozinho
no recanto daquele velho lago
de águas contaminadas e negras
dum jardim que já ninguém visita,
cresceu o nenúfar.
E desabrochou em flor…
uma flor
que contra toda a evidência
teima em edificar um molhe,
qual couraça,
que só ela sabe indispensável à vida.
Cada dia,
em silêncio,
apoderou-se dos olhares sequiosos
de uma ou outra criança que por ali passava
e o tentava roubar,
com mão trémula e hesitante,
à quietude do velho lago.
Cada noite,
em segredo,
contemplou o porte altivo daquele candeeiro
de luz mortiça,
também ele abandonado à esquina
dum jardim que já ninguém visita
onde, debaixo dele, montou residência fixa
um vagabundo errante
e esquecido da vida.
Cada noite,
cada dia,
em silêncio e em segredo
decorou o eco dos passos vazios
que deixavam poemas de dor e solidão escritos
nas pedras daquela calçada;
cada dia,
cada noite,
contemplava as pedras desse lago
e lia nelas signos impossíveis de traduzir
o outono da vida
que não tardaria a chegar.
Cada dia,
cada noite,
no movimento pendular das estações do ano
abria-se à sumptuosidade do tempo,
e da vida,
e perdia-se no exílio daquele lago
de águas sujas e negras;
e resistia ao tempo,
firme e erecto
na sua cor de vermelho vivo
cor do sangue,
cor da vida.
Como tu
que tantas vezes, e sempre, caminhas
erecta e firme
sem te dobrares ao tempo, se te é agreste,
sem te dobrares aos espinhos da vida
que se atravessam no teu caminho,
construindo a luz
quando o dia tem mais bruma,
semeando estrelas no mapa da vida
mesmo quando ela tem mais espinhos.
Como tu,
MULHER-NAVIO-POEMA.