“Ainda uma vez adeus!...”. Eduardo não pensou que poderia voltar a esta terra. Partiu prometendo voltar, mas no peito a certeza de que não seria assim. Cinco anos se passaram, ele mudou, a cidade mudou... Para melhor, poderia afirmar.
Estava sentado à sombra da estátua do grande poeta maranhense, na Praça Gonçalves Dias. À sua frente, o encontro dos rios Bacanga e Anil com o mar. Logo depois da ponte José Sarney, a cidade dos edifícios, como ele gostava de chamar aquele lado de São Luis. No entanto, preferia o lado de cá. Com seus casarões testemunhando uma época de glórias, de sonhos. Era que passou, e cujos testemunhos erguiam-se e sobreviviam bravamente ao tempo, ao clima, ao descaso. Cada paralelepípedo, cada beco, cada azulejo... Tinham um sabor de nostalgia, viveu apenas cinco anos ali, mas as lembranças que levou consigo, eram como uma ferida não cicatrizada que hora e outra latejava em seu coração. Existia poesia nesta cidade. Não era falso que São Luis inspirava amores, embalava sonhos. Talvez, por causa do passado que teimava em reinar, ou fosse o vento que parecia tão acolhedor quanto sua gente.
Consultou o relógio. Meia hora e a tarde se despediria. Sorriu consigo mesmo. Sexta noite, centro histórico... Em sua adolescência, na primeira noite de “excursão” em São Luis passou por um grande sufoco... Estava com três colegas da escola. Queriam lhe apresentar sua cidade. Andaram por museus e ruas. Racharam os trocados que tinham nos bolsos e compraram sorvetes. Um guia turístico levava um grupo de franceses. Ele ficou ouvindo, achou bonito o sotaque dos turistas. Muito admirado contemplou a arquitetura neoclássica do Palácio dos Leões.
Uma decepção que tivera foi com o aspecto de decadência e as ruínas que encontrou durante o passeio. Se as coisas permanecessem assim, o maior acervo arquitetônico histórico da América Latina não resistiria. E o que seria de São Luis sem a sua alma? Onde dançariam aquelas mulheres do tambor de crioula, ou os dançantes de bumba-meu-boi? No recolhimento de suas comunidades e um dia (oxalá Deus jamais chegasse esse dia!) possivelmente seriam esquecidos. Mas, havia ainda esperança. São Luis foi tombada como patrimônio histórico cultural, já fazia quase um mês. Não permitiriam que aquilo virasse poeira e esquecimento. Foi o que João, o líder do grupo lhe dissera.
Ficaram ali, na Praça da Seresta, um auto de São João estava sendo apresentado aos turistas. Seus colegas queriam ir embora. No entanto, ele ficou. Como poderiam enfadar-se num palco daqueles, com aqueles lampiões tingindo as calçadas com aquele amarelo ouro envelhecido, como podiam ignorar não valorizar o que tinham? E a noite caía suave. O Reviver parecia ganhar mais vida. As pessoas se reuniam nos terraços dos bares, nas praças... Quando o cansaço o venceu, Eduardo consultou o relógio, já passava das dez da noite. Sua mãe estaria histérica em casa, ele não conhecia São Luis, provavelmente ela já havia contatado a polícia! Sorriu satisfeito, a pequena aventura valeria a bronca que escutaria antes mesmo de pisar dentro de casa.
Pegou o caminho da Rua da Estrela e saiu, tentando lembrar qual rua ou beco deveria seguir para chegar ao Mercado Central e pegar a condução para casa. Tinha certeza que errara o percurso. Chegou num trecho onde os lampiões não tinham luz, na escuridão iria se perder de verdade! Quem já esteve em lugar estranho conhece essa sensação de medo e insegurança. Era sempre assim. Refez os passos, ainda não tinha perdido o controle! Voltou por onde viera. Começava a suar frio. Era mesmo um maricas! Onde já se viu, tremer assim?! Não sabia por que se sentia tão amedrontado. Não fazia sentido!
De repente, parou. Tinha certeza que ouvira um gemido alto, cascos de cavalos sobre as pedras da rua, não! Era um grito! O som parecia cada vez mais perto. Ele quis correr, mas estava simplesmente paralisado! O som se aproximando. Era um grito de agonia. Anos de dor traduzidos naquele som terrível. Sem saber mais o que fazer, Eduardo fechou os olhos. Sentiu quando o vulto passava por ele. Então, a curiosidade venceu o medo. Abriu apenas um olho. Parecia uma carruagem. Dentro dela, uma mulher de aspecto tão medonho que levou Eduardo a molhar as calças. Quis gritar, mas nenhum som saiu de sua garganta. Tinha certeza que morrera, e logo veria o “grande túnel”.
Não soube quanto passou para se recuperar. Mas quando “acabou” correu feito maratonista até chegar ao caminho que procurava.
Noites a fio a imagem daquela mulher e sua condução assombraram seus sonhos. Mais tarde soube ser a carruagem de Ana Jansen. Era o segredo que guardava consigo. Preferia acreditar que ouvira aquela estória, sim uma estória, em algum lugar. Protestava, afirmando que fora um surto num momento inusitado, quando cercado pelo medo e solidão. Mas, só para prevenir nunca mais andou sozinho às sextas-feiras à noite.
No entanto aquela visão o perseguia, via coisas, quando se aproximava da fonte do Ribeirão dizia que não ia olhar, mas acabava se rendendo e tinha certeza que aquelas carrancas sorriam para ele! Estaria louco, muito sugestionado! Insano? Não, foi só impressão, com o tempo o medo o abandonou, e passou a sorrir da sua infantilidade.
Partiu para Recife cinco anos depois do episódio, estava com vinte anos. Mas deixou um elo na cidade. Sua namorada que ainda estudava e vivia com os pais. Eduardo tinha mais oportunidades fora do Maranhão e partiu, afirmara que só por um tempo. Foi ali naquela praça que se encontraram pela última vez. Ela chorava e apesar dele dizer que ligaria e escreveria sempre, Paula não acreditava. Dizia que era o “adeus”. Ela amava o poema que Gonçalves Dias fez para Ana Amélia, e falou que se um dia esbarrasse nele, não fingiria que era um desconhecido, que ele prometesse fazer o mesmo, que nunca se esquecesse dela, que o “adeus” não durasse para sempre. Mesmo assim combinaram que em cinco anos estariam ali de volta. Independente do que fosse acontecer depois, ou do que teria acontecido antes.
A cidade, agora tingida pelo cinza azulado da noite e pontilhos luminosos parecia bater-lhe amigavelmente no ombro. Paula foi ela que o havia esquecido e ele não havia deixado de querê-la. Ergueu o rosto e contemplou a estátua. “Não se morre de amor, meu poeta , mas se sofre muito”. Ainda esperou alguns minutos, a esperança dissolvendo-se como fumaça no vento. Então ,quando resolveu ir embora, duas mãos pequenas e macias vendaram seus olhos. Uma voz vagamente familiar sussurrou no seu ouvido: “Vivi, pois Deus me guardava
Para este lugar e hora
Depois de tanto, senhor
Ver-te e falar-te outra vez...”
E quem disse que um homem não pode ser um tolo, às vezes?! Sentia-se um Gonçalves Dias realizado, pois tinha finalmente seu “quinhão de alegria”. Era o seu outro segredo, confessado apenas a esta cidade, esta ilha de amores.
Helayne Xavier Bras
Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!