Crónicas : 

eu e a minha máquina de lavar

 
Caríssimos leitores, sejam bem-vindos a mais uma rúbrica em que o autor, após queda ao experimentar o efeito dos saltos altos, deu de queixos na calçada portuguesa, voilá, por sorte, nenhum senhor da conservação do património estava a passar no momento, porque se não...

Mas nem tudo o tombo levou.
Nesse dia fiquei a conhecer o senhor Ernesto, exemplo de como contornar obstáculos sem ir à volta, ex-campeão regional de lançamento de cuspo, nos idos anos oitenta, com o record que ainda hoje se mantém, 35,17 metros de distância. Dizia com saudade e um choro miudinho, enquanto, deliciado, me exibia o seu cartão de praticante, que infelizmente a vida tem destas coisas, foi forçado a largar a modalidade desde que o vinho encareceu e, ainda para mais o tipo da adega que lhe patrocinava, às prestações, deu o badagaio, que nem vale a pena falar mais nisso, porque passado é passado.

Agora é uma pessoa feliz, diz-me, com a cramalheira a fugir para tons de beije sempre que sorri. E eu tento ripostar com sorriso da mesma envergadura, mas fico quilómetros aquém.
O senhor Ernesto, tem uma particularidade abismal, mora numa máquina de lavar roupa há cerca de ano e meio e recorda que os anos anteriores não lhe foram de todo favoráveis até porque corria na barra do tribunal o processo de separação e a custódia dos seus sete filhos e outros tantos por perfilhar.

- Agora vivo tranquilamente, senhor Silver, na minha máquina de lavar, e ninguém me incomoda! – Diz o homem sem querer com isso provocar alguma inveja.

- Mas ó senhor Ernesto, a adaptação devia ter custado um pouco, não?, principalmente para os costados – Perguntei-lhe.

- Quando entrei pela primeira vez para a minha nova moradia, sim. Não sabia onde é que iria pôr uma terrina da cristal D’arque que veio junto no enxuval ou, quando quero fumar um cigarrito, tenho de sair da máquina para não deixar cheiro na roupa.

- Mas você não tem o sonho de morar numa...numa...bem, você sabe.

- Claro que sim! o meu sonho é...como lhe dizer sem denunciar a minha timidez, não repare, sou assim, foi desde que conheci uma mulher, bonita como os raios de sol pela manhã, e, após falarmos disto, falarmos daquilo, os afectos a correr-nos nas veias, estamos a pensar em nos casar, juntar os ossos e as carnes, e como deve calcular, precisamos de mais espaço para unir as nossas vidas, os nossos sonhos, que temos vindo a batalhar, por isso uma máquina de lavar de 2 por 3, com um bom tambor de rotação, a baloiçar devagarinho, para os dias que custa adormecer, era o melhor que me podia acontecer. E se possível com um cantinho para a criança que vai nascer, e aí ela poder brincar à vontade.

- Não compreendo, mas isso não será no mínimo...apertado!

- Nada disso, tenho o projecto na cabeça, se tudo correr bem no dia 27 de Maio estarei eu e a minha Mélinha na nossa nova máquina de lavar, a contar o dinheiro das prendas antes de estrearmos o colchão ortopédico, que só Deus sabe o quanto lutei em tribunal pela custódia dele.

Continuou: na altura em que eu era atleta de lançamento de cuspo, estava em alta, e conheci muita gente importante, mexia-me bem no meio, foi a partir desses meus conhecimentos que, com uma cunha (chegou-se bem perto do meu ouvido, “mas não diga a ninguém”) obtive licença para colocar a máquina de lavar no alto de um pinheiro, situado num baldio da Panasqueira.

- Sabe, Silver, estou muito contente, vivo os melhores dias da minha vida!

Depois, um silêncio nostálgico, um poisar de olhos pelas varandas, e, como o vento nada trazia nada levava, despedimo-nos com um sabor a chocolate estragado, mas, antes disso, perguntou-me:

- E você, senhor Silver, como vai a sua vida?

Hesitei, trinquei o lábio de baixo para ter tempo de pensar, no curso de direito que tenho para acabar, depois estagiar no chupista do advogado, na obsessão que tenho pelas dietas, separar as gordurinhas, as ameaças de corte de luz, lembrei a bosta que foi quando apanhei Nita em flagra a gritar golo do Porto, a felicidade a ir pelo saneamento, pus-lhe a mão no ombro (entrou a música do Titanic) e perguntei-lhe: - que máquina de lavar me recomenda?
 
Autor
flavio silver
 
Texto
Data
Leituras
1225
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
24 pontos
16
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
OlemaCorreia
Publicado: 07/07/2009 15:52  Atualizado: 07/07/2009 15:55
Da casa!
Usuário desde: 14/03/2009
Localidade:
Mensagens: 277
 Re: eu e a minha máquina de lavar
Oh Flávio
Fiquei preocupada com as suas dificuldades em relação à máquina de lavar. Acho que tenho uma ideia para o seu problema: Há pouco tempo o Gonçalo, filho do José Torres, tinha lá uma que estava para vender. Como é uma peça em 2ª mão, é capaz de lhe fazer um bom preço. Isto é uma sugestão.
Mas agora, à margem da brincadeira, quero felicitá-lo por esta sua crónica, aliás pela sua escrita em geral, cheia de criatividade e sentido de humor.
Um abraço
Olema
P.S. Nunca se esqueça de levar a viola consigo, é mais uma vertente enriquecedora da sua pessoa.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/07/2009 16:00  Atualizado: 07/07/2009 16:01
 Re: eu e a minha máquina de lavar
Amei essa crônica pela beleza de humor que nela encontrei...
Hoje estava precisando mesmo de algo assim para afastar as nuvens escuras!!!

Mas embora seja emgraçado muitos de nós vivemos em máquinas...

Parabens!

Beijos carinhosos!
Rosa



Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 07/07/2009 17:06  Atualizado: 07/07/2009 17:06
Colaborador
Usuário desde: 28/01/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 2171
 Re: eu e a minha máquina de lavar
Suas belas crônicas são sempre instigantes,fazem pensar o conteúdo das entrelinhas,definem muito bem o verdor de sua inteligencia e inspiração. Parabéns, Bjs Lu.


Enviado por Tópico
Psiqué
Publicado: 07/07/2009 19:30  Atualizado: 07/07/2009 19:30
Participativo
Usuário desde: 25/06/2008
Localidade:
Mensagens: 11
 Re: eu e a minha máquina de lavar
E o Sr. Ernesto pode bem trabalhar numa loja de eletrodomésticos, no setor de máquinas de lavar; Eu da minha parte tenho uma, na verdade uma que caminha pela área de serviço, quando em serviço, e cujo motor se assemelha ao ronco de um avião 737 quando decola... e se não me aconselhar com o Sr. Ernesto logo serei expulsa do condomínio.

Um show de escrita!
Beijo,
Psiqué.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/07/2009 19:46  Atualizado: 07/07/2009 19:46
 Re: eu e a minha máquina de lavar
Pergunto-me porque não percorro novos cantinhos onde se escrevem excelentes cronicas.Comentar tem que ser para mim um acto de procura. Só assim encontrei este texto muito bem escrito de cheio de humor. Ainda assim contem uma mensagem para reflectir.

Adorei a passagem

Beijo azul


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/07/2009 21:13  Atualizado: 07/07/2009 21:14
 Re: eu e a minha máquina de lavar
..rs...rs...ai ai, estou me refazendo aqui..rs...QUE HISTÓRIA!!!...QUE CRÔNICA!!!...Depois disso tudo só posso agradecer tudo o que tenho...rs...Eu recomendo a vc uma Brastemp...rs...é a marca da minha máquina de lavar...rs...ela está comigo a 23 anos...hahahaha....mas não moro nela...rs...ela é que mora comigo....rs....bjos.


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 07/07/2009 21:50  Atualizado: 07/07/2009 21:50
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: eu e a minha máquina de lavar
Flávio,
fico sempre impressionada com as tuas crónicas.
A ironia muita vez serve de suporte para que se aflorem assuntos mais ou menos sérios, porque sábio é aquele que a brincar consegue com que o seu leitor reflicta seriamente.
Ler-te é sempre um prazer.
Beijo


Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 08/07/2009 19:06  Atualizado: 08/07/2009 19:06
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: eu e a minha máquina de lavar
A vida tem mesmo destas coisas, embora a figura da máquina de lavar seja surreal. Muito bem contada a história nessa vertente. Abraço Flávio