Teresa levantou a cabeça lentamente. O corpo dorido jazia dobrado sobre os joelhos, as pernas em cruz. Reflectia: O corpo em chagas, chagas na cruz. Sentia-se queimada, tal uma ucha, não do sol do dia passado na praia, na Baia de Gaivotas, mas emurchecida pela lava vulcânica em que se havia tornado a sua vida.
Viera para a Baia, não porque o desejasse mas porque o quotidiano da vida, lhe impunha ano a ano o regresso. Uma espécie de regressar a casa, depois de onze meses, em que a espaços, voltava de fugida e de fugida regressava ao bulício da cidade. Durante onze meses repartia a vida em diferentes tabuleiros, nos quais era, de forma alternada primeira figura ou apenas figurante. Pouco lhe importava. Na verdade, Teresa sentia-se sempre espectadora, de um filme onde a vida a projectava, e para o qual, não havia estudado o guião, nem sequer ensaiado as cenas ou as falas. Em muitos casos, desconhecia a banda sonora, a trilha.
Teresa, avançava em palco, numa espécie de letargia e, todavia, a peça acabava por atrair públicos e vendia. Teresa actora , sorria!
Chegara de véspera. O Sol de Julho, estava a pique, a baia repleta de veraneantes, vindos das cidades e serras próximas. A sua baia não lhe parecia a mesma, o mar de Inverno, tal como a Teresa, produzira-lhe morfológicas alteração. O nascer do dia, despertara para a urgência do retomar as pontas perdidas do jogo de marionetas. Teresa era uma marioneta... viajou a Praga, estava em Praga, era Inverno, perto da altura do Carnaval ... atravessava a Ponte no sentido sul, e à sua direita, António. Não o “seu” António, mas Santo António de Lisboa, o casamenteiro. Com o menino ao colo. Em Praga. O seu carma , António e o menino ... o menino e António. Teresa sorria da lembrança.
A seu lado, outra primeira figura, de uma comédia qualquer, comentara a importância de Santo António de Lisboa, na Europa do seu tempo. Teresa há muito deixara da ouvir... pouco retivera do assunto, até porque o sue pensamento havia viajado para além do espaço, e se aninhava agora “menino” no colo de Santo António, padroeiro dos amores impossíveis. Cerrara os olhos e formulara votos. Votos de ser de António, para sempre o Pólo. Estranho voto, aquele. Mas Teresa houvera-o formulado e era-lhe fiel, até aquele momento.
Sim seria Pólo na vida de António. Na vida e para além da vida. Seria Pólo para sempre! Sorria da ideia.
Naquele instante, um marroquino atravessa-se na sua frente e, num gesto inusitado e estranho, dança com uma enorme marioneta. Uma Bruxa. Uma enorme marioneta bruxa... Teresa, sem aviso, como sempre, dança na ponte, com a bruxa, com o marroquino, Teresa é a bruxa e o marroquino o destino. Ao redor, os passantes quedam-se perante o estranho espectáculo. Uma mulher elegante, de verde-seco vestida, um longo casaco, botas altas a condizer, havia soltado amarras, largara a mala de mão, tombada no meio da ponte e dançava uma estranha dança, uma dança de criança, chapeada com uma bruxa. Uma bruxa marioneta.
Mas quem puxava os fios? Teresa? De todo não. Como sempre vagueava, numa bola de sabão. Não, de todo não ...
O destino, tomara-a na sua mão, fazendo dela a bruxa que encenava uma peça, suspensa p’lo coração. Os improvisados espectadores, davam estridentes gargalhadas, fixando da bruxa os olhos, os olhos espécie de brilhos. Verdes brilhos da Bavária. Teresa-Bruxa , quem és tu?
Teresa esgaçava um sorriso ... António, com o menino ao colo abençoava. Teresa rodopiava, uma dança ousada, louca. Finalmente aquietada, como se não fora ela a fera, que antes encetara a dança, envergonhada com o facto, devolvia agora a Bruxa, colocava de novo a máscara. Era senhora distinta. Recolhia os pertences, ajeitava a camisola, abotoava o casaco.
E sem olhar para trás, avançava pela ponte, sem rumo fixo ou destino. António empoleirado, no seu posto cimeiro seguia-lhe agora o rasto e guiava-lhe o caminho. Pólo Sul. Era o seu pólo.
Teresa atravessava a ponte, naquela manhã de Inverno, guiada pelo seu Anjo.
(continua ...)
Capítulo I - A Baia, in "Baia das Gaivotas"
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