Ninguém escapa de cair um dia, de se estatelar numa calçada ou mesmo no piso do banheiro, ou até em lugares menos convencionais, como a pista de danças de uma boate ou a borda de uma piscina. Caímos no mundo ao nascer, caímos na cova depois de mortos, caímos de maduros...
E Elisa ainda inovou mais neste particular. Tinha comprado uma sandália cujo salto inteiro e estreito na base era mesmo um atentado à segurança de qualquer pessoa. Contra todos os argumentos que saltavam aos olhos, ela contra-atacava com um longo suspiro e assim, acabou comprando e apagando da mente qualquer idéia menos confortadora. Só via o quanto seria especial poder usar aquela maravilha que combinaria perfeitamente com seu estilo, cor discreta e um salto alto pra dar o toque feminino.
Fez sua mala para o fim de semana com ele, ah, esperava ansiosa pela viagenzinha quase semanal que fazia e que dava um novo significado para um casamento já longo, ao qual o destino e a vontade do marido em melhorar de vida haviam dado uma oportunidade de uma nova vivência, cada um em uma cidade e se encontrando em um hotel como novas personagens da mesma história. Ele a esperava na rodoviária e só voltava ao trabalho ao se certificar de que tudo estava bem, que ela ficaria confortável, e fora sempre essa forma de tratamento que a fizera amar aquele homem tão sem vaidades e dedicado aos outros. Fazer amor naquela cama simples do pequeno quarto de hotel aonde ele morava era uma experiência nova, como um segredo de dois desconhecidos.
Viajou de sandália nova sem problemas. Estando já acomodada resolveu ir ao supermercado mais como passeio, e esqueceu completamente o perigo, uma vez que parecia equilibrar-se muito bem. Pegou algumas frutas, pesou, depois foi andando em direção à saída. Quando apressou o passo, sentiu que seu pé esquerdo foi indo e em seguida o outro e viu em segundos as coisas passando por ela, as cores misturadas e sua mão tentou agarrar-se ao que estava no caminho, já perto do último caixa da direita. Era uma gôndola cheia de salgadinhos e afins e foi tudo caindo sobre ela que acabou terminando seu trajeto ao lado do caixa sete, por sua grande sorte, pois ali podia ficar um tempo escondida entre o balcão e a parede. Felizmente parecia que não havia sido muito notada a sua proeza. Pagou e saiu rapidamente.
Já se passaram alguns anos e Elisa olha para uma vitrine e lá vê uma sandália quase igual àquela. Seu coração se aperta e não consegue evitar as lágrimas. Tem sido assim desde que ele morreu. Já vive com essa ausência como ferida visível mas quase cicatrizada, apesar de não conseguir evitar esses momentos, quando a alma distraída esquece de se proteger, quando um recanto da memória escapa à vigilância e a visão de um objeto, uma peça de roupa, caem instantaneamente como pesadas pedras sobre seu peito. Mas não dispensa os saltos altos. Com eles faz contato com o chão, ouve seus próprios passos, sabe que ainda vive e que portanto está sujeita a quedas. Aquele braço que a protegia do mundo já não existe. Aquele braço em que se apoiava nas dificuldades e se aninhava no amor é só uma lembrança boa.
Olha para a frente e sai rua afora como uma equilibrista sobre os saltos...