Crónicas : 

eu não tenho um botão, entende isso?

 
sente-se e ponha-se à vontade.
fume um cigarro se quiser.
quantas ruas tem o pensamento, já pensou nisso? quantas horas cabem dentro dos segundos? acha que morrer ao fazer amor é uma morte feliz? e entrar na auto-estrada em contra-mão é um duelo?
respire fundo. controle a pulsação.
o mar há-de vir sobre nós. faça por acreditar na mais pequena ideia do céu. os anjos são pedaços de nós. creio.

tenho uma história na cabeça que não sei como a hei-de contar. para alguns é triste para outros é alegria. o soldado morreu na guerra quando tentava salvar uma criança, deu o seu corpo à bala para salvar a criança. eco: para salvar uma criança para salvar uma criança par-a sal-var uma cri ança crian-ça.

se o sangue falasse o que diria naquela hora? sei que a criança cresceu com uma deficiência no peito. mas não era deficiência física, era algo que os olhos não observam nem a medicina, através de múltiplos rasgos no corpo, não consegue lá chegar. pelo que parece do peito da criança que cresceu e que agora é adulto, saem gritos de guerra, como uma fúria de tambores.

pormenor: o peito pertence a uma rapariga que, como todas as raparigas deste mundo, pensa em ter um filho. assim aconteceu: a vinte de março a rapariga, cujo nome ficará no registo da parteira que lhe tirou o bebé do ventre, pariu um menino de olhos da cor do mar. detalhe: a criança tinha uma pequena mancha no braço esquerdo. assim que a parteira lavou o menino, envolveu-o num paninho quente de lã, entregou-o ao braços da mãe. foram dias felizes os que se seguiram. os gritos que saíam do peito sumiram-se com a mudança de estação.

ninguém sabe descrever a felicidade dos que a sentem, nem mesmo todos os escritores do mundo reunidos num papel. a criança foi crescendo e com ela crescia a pequena mancha do braço esquerdo que de facto se tornava maior e perceptível o seu desenho. há quem acerte no futuro mas não há quem adivinhe no futuro: são duas coisas distintas. já a vida e morte podem ser irmãs gémeas que caminham lado a lado. assim creio.

um dia, na terra, a claridade fez-se ver por dentro das coisas vivas e, na casa onde moravam: mãe pai e filho; se condensaram numa única luz, como se atados uns aos outros por um extenso fio de luz. eram uma fonte que brota.
não havia explicação.
nem método de ilusionismo para resolver o teorema.
repararam que a luz tinha uma origem, um começo: vinha da mancha do pequeno joão onde o desenho dava a vez a uma palavra. mas não era uma palavra qualquer. era uma palavra que em tempos pertencera a uma voz, a um corpo, a um sangue movido. palavra. palavras. palavra. palavras. palavras. palavras. todos sorriram. reunidos num segredo.
eu não sei bem o que dizia a tal palavra que reluzia mas acho que tem a ver com: pai filho e espírito santo.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/07/2009 19:51  Atualizado: 03/07/2009 19:51
 Re: eu não tenho um botão, entende isso?
Amém!...estou aqui pensando, este botão não seria as vias da certeza da morte cerebral?...ummm...sou doadora de órgãos...rs...

Maravilha de texto!

Bjo.

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 03/07/2009 20:00  Atualizado: 03/07/2009 20:00
Membro de honra
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 Re: eu não tenho um botão, entende isso?
À primeira vista parece que as ideias não ligam. Mas ligam e muito bem por aquela luzinha que nos acende o coração sem ser preciso botão. Abraço Flávio

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 03/07/2009 22:22  Atualizado: 03/07/2009 22:22
Membro de honra
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 Re: eu não tenho um botão, entende isso?
Excelente texto e excelente Flávio. Eu já nem sei se tenho ou não um botão, se calhar começo a ter a doença, como se chama, como se chama ela, não me lembro
Abraço amigo e bom fim de semana
A. da fonseca


Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 04/07/2009 02:00  Atualizado: 04/07/2009 02:00
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 Re: eu não tenho um botão, entende isso?
Bravo! De ideias diferentes que pareciam no início do texto... tudo fez sentido no final.

Acho este texto brilhante!

Um beijo


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 04/07/2009 12:04  Atualizado: 04/07/2009 12:04
 Re: eu não tenho um botão, entende isso?
É verdade que no peito sempre sentirá a dor, não provocada pela dor física mas por outra mais profunda que só é visível quando os gritos se soltam. Mas tudo pode mudar quando somos salvos por outra vida que nasce dentro nós.

Talvez a palavra seja AMOR…

Gostei muito de o ler.

Abraço.