Prosas Poéticas : 

Doer É Quase Morrer

 
é preciso morrer para mais ser que pessoa. as cabanas dos sonhos, cercadas por água azul transparente, são dos sonhos. os sonhos são o caminho poeirento da morte. por chegar ao fim vou deixar de sentir. vou encerrar os olhos como se baixam os panos ao acabar o espectáculo. os bocados de carne separam-se do bocado maior de carne. o sangue é pouco e nem chega a ser suficiente para rastejar no chão. olhos abertos ou olhos fechados, tudo nubleado. nevoeiro cerrado para lá e para cá de mim. nevoeiro cego de olhos abertos e olhos fechados. logo agora que sentir já não sinto, fazia-me falta ver. ver só por ver, para não ficar petrificado entre as pedras de casa. ver só por ver sem sentir que já não sinto. e morrer. que falta faz morrer sem razão, já que não sinto. se não sinto é morrer sem razão. razão, sempre o objectivo de qualquer conversa com mais de uma palavra. até mesmo só com uma palavra. sim, não, sim são razões. de olhos abertos ou fechados são sempre razões, com nevoeiro ou sem ele. os dias acontecem com ou sem o meu nevoeiro de olhos abertos ou fechados. fechados! espaço fechado e apertado, a asfixiar os suspiros. o medo impresso no gatilho da pistola pronta a acabar com a vida. o medo na pistola. na vida. o medo e a pistola na vida. a vida no medo e quase na pistola. a vida no medo e o medo na vida da vida. suspiros apertados a asfixiar o espaço fechado. as mesmas coisas de maneiras diferentes. as mesmas gentes de maneiras diferentes. os corações iguais envolvidos nas diferenças. só me dói não doer mais para a vida no medo ser mais forte que o medo impresso no gatilho da pistola pronta a disparar. dois estrondos. comecei a ser mais que mais um.

Hugo Sousa

 
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