Crónicas : 

nem ácaro nem ácarozinho

 
Gosto de promoções.
Gosto de ser enganado um bocadinho.
Mas só um bocadinho. É que se passar de um bocadinho já me altera o nível do colestrol, o ácido úrico dispara e, a diabetes, nem vos digo.
Gosto de comprar a metade do preço embora sem saber qual o preço inteiro. Gosto de pensar que os meus eurinhos foram bem investidos apesar de não entender nada de aplicações financeiras.

Outro dia vieram-me à porta bater, e desta vez não era da Jeová, ufa!, era um tipo bem arrumado dentro de um fato escuro que me queria explicar as funcionalidades múltiplas de um aspirador moderno, com desavinte botões coloridos que, com um bocado de jeito, até serve para tirar calos dos pés.
Ao início pensei em despachar o senhor com o meu péssimo humor, fruto de assistir às assembleias camarárias, mas, e como diz um verso da Amália Rodrigues, “foi por vontade de Deus”, que eu abri as portas de minha casa para que o técnico de aspirações de ácaros e verdetes fizesse uma demonstração prática ao meu simplório T1, sem garagem e com vista para o acampamento de ciganos.
O senhor, com cerca de trinta anos, dotado de uma inteligência para assuntos de mecânica de aspiradores, tratou logo de me surpreender com a quantidade de lixo que microscópicamente coabitava num tapete que, por ter sido comprado na Festa do Avante, eu jamais imaginaria que insecto ou ácaro algum pudesse aderir ao tapete.

Mas não! Os ácaros lá estavam, no meio de cinza de cigarro, nódoas de Borba e outros materiais que só a medicina forense é capaz de identificar. O meu espanto foi entendido com um riso efectuado pelo senhor dos aspiradores.

Passou à fase seguinte: verificar o colchão da minha cama. Feitas as manobras essenciais ao aspirador, este, mal accionado o botão, começou a sugar quanta porcaria existia no colchão. Mas que eu desconhecia! Garanto-vos que eu não sabia que as minhas lindas costas, como quem diz, assentavam naquele rectângulo fofo, mas cheiínho de ácaros quanto basta para que eu me sentisse envergonhado perante o agente dos aspiradores que, pelos vistos, não perdoava nem ácaro nem àcarozinho.
Fiquei sem palavras perante aquele espectáculo de lixaria a subir pelo cano do aspirador até a um saquinho que ele fez o favor de me mostrar como prova da minha falta de asseio.
- Está a ver!

Feito isto, o técnico dos aspiradores miraculosos despiu o seu lado de fachineiro e vestiu-se de um outro que era: o de técnico de contratos.
Só ao fim de dois minutos é que me apercebi que aquilo que ele falava de facto não era chinês, mas sim uma linguagem quase perto de ser considerada um Chamamento. Pela simples razão de o técnico, aquando o seu discurso meio filosófico, fazia uns gestos, de que me lembra, só o Papa João Paulo II é que os fazia quando na sua varanda orava para os seus fiés.

À parte disto, e o seu ar angelical a propor “ande lá, compre o aspirador!”, fiquei cem por cento embriagado quando ele me disse o preço: 400 euros. Por extenso: quatrocentos euros a serem pagos em cómodas mensalidades.
Aqui foi o momento crucial.
Como lhe dizer que estou sem emprego e que não tenho crédito em lado nenhum? Comecei por lhe falar de estrelas cintilantes e astros por descobrir, mas o técnico, que era sabido como um raio, voltava ao assunto que o trouxe até mim: vender-me um aspirador moderno! Pedi-lhe mais uma prova das capacidades do aparelho, desta vez no meu escritório, pouco recomendado a ambientalistas, ao que ele, todo vaidoso, pegou no sofisticado engolidor de bactérias e, zás!, deixou-me o escritório num brinquinho.

Depois mais uns tectos difíceis de alcançar, mais umas paredes mortas, mais uma divisão da casa, e por aí. De facto o aspirador tinha muitos aspectos positivos, excepto um: o preço. Tentei negociar. Que absurdo!, disse-me ele. 400 euros e nada menos! Comecei a ficar farto de limpezas, o tom da nossa conversa afiou-se, de senhor para aqui e para acolá comecámo-nos a tratar por tu, entretanto já era noite e, após longo impasse, sem querer abusar mais da paciência do homem virei-me para ele e perguntei-lhe:
- Quanto tempo demora a formação de novos ácaros?
- Cerca de seis meses – Respondeu-me ele de pronto.

Matutei.Fiquei mais de sessenta segundos a admirar o aspirador numa contemplação quase-poética. Era lindo! Tinha uns encaixes bonitos, mas, feitas as minhas contas de cabeça, e olhando agora para a minha casa limpinha, os tapetes e colchões a reluzirem, isentos de pó e ácaros que ele fez o favor de os limpar sem pedir nada em troca, eu a ver como é que contornava a coisa e tal, eureka!, disse-lhe com a maior das latas, num jeito só meu:

- Sabes...acho-te um tipo especial, um artista, inclusive...olha que conto contigo daqui a seis meses, ouviste?
- Ahaa...ahaa...
- Que ahaa, deixa-te de modéstia homem, quando a minha família inteira ouvir falar de ti...!
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/06/2009 16:59  Atualizado: 23/06/2009 17:01
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Onde é que anda o homem?

Ele que venha cá negociar, talvez dê jeito!

Bem ao teu estilo!

Abraço

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 23/06/2009 17:13  Atualizado: 23/06/2009 17:13
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Vê lá se ele não quer fazer uma demonstração cá em casa, limpar ácaros, vidros e portadas, sem esquecer os cortinados

És um reguila quase poeta!

beijinho

Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 23/06/2009 18:13  Atualizado: 23/06/2009 18:13
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Este homem poderia vir visitar o Brasil,
principalmente minha casa, assim o tornaríamos
eliminador de ácaros internacional, rsrsrsrs,
belo escrito, beijos!

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 23/06/2009 21:56  Atualizado: 23/06/2009 21:56
Colaborador
Usuário desde: 01/09/2008
Localidade:
Mensagens: 669
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Faz bem em deixar-se enganar um bocadinho, porque a maior parte de nós somos enganados num bocadão.
Mas não fico muito preocupado com a sua capacidade negociál. Se calhar passados seis meses o negócio continua a valer a pena.
Deixe que o felicite pelos seus belos textos e sentido de humor.
Um abraço
Antónius

Enviado por Tópico
pedrobito
Publicado: 23/06/2009 22:12  Atualizado: 23/06/2009 22:12
Usuário desde: 13/01/2009
Localidade: Leiria
Mensagens: 195
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Não sei se o aspirador era o mesmo, nem se o homem era o mesmo, mas já vieram a minha casa fazer uma demostraçao dessas. Limparam-me principalmente os sofás e cortinados. Não limparam mais porque já tava farto dos aturar e descaradamente agradeci e os mandei embora...

Parabéns pelo texto...

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 23/06/2009 23:53  Atualizado: 23/06/2009 23:53
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Só agora é que o homem chegou ao norte?!
É que já lá vão uns bons anitos que lhe abri a porta aqui de casa...
Além de me mostrar isso tudo também, ainda me ofereceu um conjunto de facas fantásticas que me dão um jeitão, cortam que se fartam e nem cegas estão ainda!

É claro que não comprei o dito aparelho sugador da raimbow, pois o meu velhinho da siemens lá vai aspirando a maior...

Um texto bem humorado e que me fez sorrir, pois ainda tinha as imagens da demonstração na lembrança e imagino o gozo que deve ter sido.

Beijo

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/07/2009 17:48  Atualizado: 06/07/2009 17:48
 Re: nem ácaro nem ácarozinho
Já me tinhas contado esta crónica numa noite da ácaros na voz.
Se na altura achei o máximo, ao ler-te senti um imenso prazer.
Porque és meu amigo e falas de escrita comigo nos tempos mortos, que são os livres.
Mas olha...Isto não tinha na tua forma contada outro final?
O tipo não soltava os ácaros perante a tua recusa?
Não gostei. Adorei o texto e a sua ligeireza.