Vem falar-me dos dias
em que ainda se faziam amigos
Daqueles dias das palmeiras
do dendém
das bananeiras e coqueiros
onde subíamos em eternos desafios
de sempre novas brincadeiras
Vem falar-me dos amigos desses dias
tão longínquos
Dos amigos sem cor
desinteressados
que então havia
Vem falar-me das correrias no areal
da praia da Restinga
Vem falar-me da Colina do porto do Lobito
e do alto da Bela Vista
a dominar a cidade
Vem falar-me do Compão
e de Catumbela também
Vem falar-me
dos namoros desses dias longínquos
que não me falas em vão
Vem falar-me das rebitas no Benfica
e no bairro do Kalillongue
vem falar-me de Huambo
mas fala-me com verdade
Das boitas das meninas do Kandumbo
das passagens de ano no Atlético
dos carnavais no Ferrovia
e da farmácia do Martins
Vem falar-me disso tudo
vem matar-me esta saudade
Das meninas do Operário de Luanda
do kizomba sempre a bombar
fala-me também do samba
e do futebol nos Coqueiros
Das cucas bem fresquinhas
nas esplanadas da Mutamba
e dos velhos machimbombos
ou das mariscadas na Ilha
Das acácias floridas nas ruas de Benguela
dos poetas desta terra
do Cristo-Rei na Huíla
e da estrada serpenteante do Leba
fala-me também da Chibia
Vem falar-me das noites de luar
na Fortaleza de Luanda
luar mais lindo lua cheia
não havia
Vem falar-me das palmeiras
dos areais do Mussulo
e dos cinemas ao ar livre
Do parque do Kissama
e das fugas clandestinas
para Belas e p´ra Barra do Kwanza
Vem falar-me do Miradouro da Lua
mais parecido ao insólito
doutro qualquer planeta
Vem falar-me disso tudo
e dos poetas da minha terra
tão ausentes e tão presentes
Da Kissangua na cabaça
do pirão
e do jindungo
do óleo de palma com feijão
da muamba com galinha
do cheiro do peixe seco
que o negro Benedito assava
na fogueira entre duas pedras
a fazerem de cozinha
Ah e não te esqueças também
Vem falar-me da mulata reboliça
do seu corpo a roçar-se sob a chita
que o cobria tão catita
do suor e do cheiro do seu corpo
e da esteira
em que se deitava já cansada
de sono alta noite manhã cedo
ao romper do novo dia
quando vinha da rebita
Fala-me também da noite
que ao fim do dia nascia
entre rubros pôr-do-sol
que eternamente duravam
na linha do horizonte
E das silhuetas
desenhadas e de negro pintadas
das mulembas e bissapas
nesses pôr-do-sol cor do sangue que duravam
horas longas noite dentro
E dos imbondeiros gigantes
que guardavam sumptuosos
a lonjura da savana
E das queimadas eternas
que tingiam
de sangue rubro a cor da terra
do rubro pó das picadas
Vem falar-me do olhar das crianças
à roda da fogueira
ou à entrada da escola
dos seus sorrisos nos olhos
que sabem falar de esperança
Fala-me de tudo isso que agora
eu não vejo e tu não vês
mas não me fales
isso nunca
das mortes que a guerra fez
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dedicado a dois amigos, angolanos de raça: ao Fernando Barão, de Luanda e ao Diolindo, de Caluquembe
de Fernando AAlmeida Reis