Um, já velho, esqueleto de crâneo grisalho e ausência de carne, deitou-se na areia da praia nú. Todos, ao passarem por ele, olhavam com uma insistência inevitável. De tão escassa aparência não havia memória e, com toda a certeza, ficaria aquela de exemplo.
O ossudo não se ralava, não tinha nada a esconder nem promessas a fazer e, de amores, desses já não morreria, já estavam noutro lado.
Tinha tido uma boa e longa vida de rambóia, sem preocupações que lhe toldassem o estilo de pinante. Sempre fora esticado e disso fazia gala. Olhava-se ao espelho e achava-se elegante, irrestível. Agora já nem tanto mas, apesar de tudo, ainda era vaidoso com a sua estampa descarnada. Era, sem dúvida, um belo esqueleto com longas pernas, costelas largas e uma cara de queixo grande e forte. Presava especialmente o queixo que, pensava, lhe vincava a aparência e indiciava personalidade.
As pessoas continuavam a olhar aquele personagem anoso e estranho de corpo quase ausente. O sem vergonha mostrava-se em toda a extensão como se quisesse provocar alguma reacção. Provocava. De facto, provocava uma coerente estupefacção pelo despudor.
O cabo de mar, que por ali andava, foi avisado por alguns banhistas mais afectados e logo se deslocou ao pedaço de areal onde se encontrava a provecta ossadura no seu deleite.
A autoridade interpôs-se entre o sol e o objecto da sua presença, fazendo com que a sua desagradável sombra arrefecesse aquele corpo esquelético.
Nem reacção. Nem pontinha de reacção. Não houve, sequer um abrir de olhos mas o cabo manteve-se ali, como que em sentido e, esforçando-se com a sua postura inactiva por ser desagradável. Aquilo resultava com os camones, que se armavam em espertos e iam para a sua praia pôr as partes ao léu. O sacana do trinca-espinhas não lhe ligava pevas. Havia que ser teimoso. O uniforme prevaleceria.
Várias horas após, o sol começava a desistir e era estranho que o velho não se mexesse. A teimosia do cabo quebrou e este resolveu dar um safanão ao velho. Resolveu fazê-lo e fê-lo com irritação e no mesmo instante deu um salto para trás, ficando sentado na areia, em frente aos redondos ossos dos calcanhares do nudista. Nunca tinha tocado em algo tão gelado. Teria sido ele ao tirar-lhe o sol? O facto é que o finório estava gelado e voltara para os seus amores.
Em epílogo, soube-se que tinha sido deixado um guardanapo escrito por mão fina, em cima da mesa da esplanada da praia, que dizia que "Da vida quente resta-me o sol. Quero-me deitar nú e com ele fazer amor até morrer".
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.