Agora estamos apagados. O rio ou a ave do céu tem a nossa memória, é o silêncio que guarda a nossa fotografia, nós estamos na praça, um cravo no cano da espingarda e o grito mais livre de todos os tempos. Tu olhavas os meus olhos, sabias todas as canções e de punho erguido afirmavas o pão nosso de cada dia, novas palavras para os livros, a esperança de desejar os filhos, o nosso trabalho era como o nosso amor, o calor da terra que semeamos, o mar que mexemos como os nossos dedos entre os cabelos. Há quanto tempo... olhas o retrato amarelecido, um amarelo dedos de cigarro e lá está o teu jovem filho e tu imaginas que está a sangrar, estás por dentro daquela agonia, o teu filho era livre, todos somos livres quando temos o trabalho da poesia dentro de nós. Não tens respostas mas podes inventar perguntas acerca do que vem depois da morte. Tu vestes o teu filho de pássaro mas sabes que ele é apenas homem, um homem morto numa guerra e em todas as guerras tens um pretexto para não deixares fugir a vida, a tua vida ou a vida de cada um de nós não é apenas o nosso corpo, as coisas em nós bichos e flores. Tens febre, um calor de peste e de lixo. O LSD não está na tua colecção farmacêutica, o médico receitou-te uma caixa, apagas-te vestígios do Vietname, da guerra colonial, a tua caixa de musica, facas que cortam... onde fica o mundo melhor?! Perdeste um filho e a natureza perde litros de sangue e tu espumas da boca. Não era espumante Francês essas gotas nos lábios houve uma revolução no teu corpo, o teu corpo e a terra parecem a mesma matéria, não foi só por causa da miséria também a solidão te fez quebrar certos conformismos, não podemos ser espectadores da morte dos outros, da vida que já não vivem, essa tua pele queimada dos dias em que o trabalho do campo parecia uma eternidade dos infernos, andavas com dores no corpo, uma dor quando te baixas-te para apanhar aquela carta. Debaixo da tua saia passou o vento, o vento também tem olhos, também diz indecências. Tu não sabes explicar o teu sofrimento, sempre sofreste calada, quando o teu homem te despia parecias uma flor a ser desfolhada, brutalmente como se tu e a terra servissem para o mesmo, olhas o quarto do teu filho, um prato vazio na mesa, parece que o cheiro dele ficou nas tuas roupas. A tua tragédia é esse vazio que como um espaço de corda se pendura em ti, um peso grande que sufoca. Este novo tempo que tens agora ao dispor, esta liberdade de pessoas a sair das prisões e o medo a sair das casas, esse tempo conjugado no teu momento de despertar, estamos todos adormecidos, a revolução trouxe de volta uma essência condicionada, a infância no estado animal e puro, o caminho da liberdade selvagem, o lado imoral e impuro. A tua tragédia é esse vazio que como um espaço de corda se pendura em ti, um peso grande que sufoca, este novo tempo que tens agora ao dispor, esta nova liberdade de pessoas a sair das prisões, o medo a sair das casas, o tempo conjugado no teu momento de despertar. Estamos todos adormecidos, a revolução trouxe de volta uma essência condicionada, a infância no estado animal e puro, o caminho da liberdade selvagem, o lado imoral e impuro, é preciso ir ao fundo, transportando e recusando todo o passado para trazer à superfície um sentido primordial. Tu estás ainda suja de culpa, no teu ventre há um corpo conformado, um corpo que não grita que não deseja sair para a luz. O teu animal feito de gestos imediatos ainda não se soltou. Quando soubeste da morte do teu filho estavas cheia de vinho, depois esperneaste como uma égua, planando sobre os teus olhos um fumo, uma visão de Hiroxima, o período azul de Picasso. Tu és uma camponesa, a poesia é uma camponesa como tu mas mais esclarecida nas suas dores. Agora sentes que não foi só um filho que te mataram, aquela esperança de que todos somos iguais, donos da nossa vida, do nosso pão, do nosso corpo, tu que no fundo do teu ser sabes o caminho, esse caminho que é o amor por mais que te indiquem a resignação, o fatalismo fabricado pela religião.
Lobo