Ouvi o uivar do vento e saí apressada a procurar-te na noite fria. No escuro, ouvi os teus passos, fizeste rolar uma pedra que estava no meio do caminho.
Não te vi e ainda assim pressenti-te, sozinho.
Onde estás? Onde estou?
Lembras-te do ribeiro onde pescávamos com canas improvisadas, frágeis que de tão frágeis, se partiam com a força da brisa, como que a recusarem-se a uma chacina?
Sem ti, os peixes fugiram, o canavial secou e a brisa, de brisa fresca passou a vendaval.
O ribeiro solitário, amedrontado, perdeu a noção do tempo, do espaço, está desorientado.
Mudou o sentido da corrente e as suas águas cristalinas correm para a nascente, para aquela pequena fonte junto à aldeia.
A fonte transbordou, a aldeia submergiu, o povo fugiu.
Moram mais acima, bem no alto da montanha, do lado de lá.
Usam barcaças para vir para cá.
No campanário, no velho ninho encostado ao granito, teimosamente, ficou a cegonha, por cima daquele lago imenso.
O leito está triste, as pedras redondas e brancas perderam o encanto, o lodo toldou a água e, aqueles salgueiros de verde prateado estão secos.
Não conseguem perceber a razão do desnorte do ribeiro e deixaram-se morrer aos poucos.
Os sinos do campanário deixaram de tocar; talvez a cegonha não aprecia o toque das trindades pela manhã e ao anoitecer.
Ou será que não é capaz de puxar a corda do badalo?
A cegonha tem todo o ar de gostar de música, mesmo que seja a dos sinos da igreja.
E assim, os sinos calaram-se para sempre...depois, depois de ti.
Lembras-te das flores silvestres, dos passarinhos, das borboletas, das rãs dos charcos, dos pirilampos que nos ensinavam o caminho e nos embelezavam as noites escuras?
Lembras-te do meu sorriso, do meu cabelo, do meu perfume,dos meus nadas e de todas as pequenas coisas e belas que na alma pintávamos, os dois?
Lembras-te?...
Quisera eu ser poeta
Quisera eu ser pintor
Escrever telas e pintar poemas
Escrever, pintar, pintar,escrever
A humanidade com muita cor