Crónicas : 

A COR DO SANGUE

 
A COR DO SANGUE

Não é a similitude de traços, se é que ela existe. Não é a curva do nariz, o afilado do queixo, enfim, as linhas do perfil de cada um que me levam a querer concluir que se trate de pai e filho. Depressa seria demitido da função de decifrador de paternidades se ela existisse e nela fosse investido. Muito dificilmente chego a conclusões nessa área.
Frente a frente, de perfil para mim, fácil me é concluir a respeito de idades e da evidência de duas gerações vizinhas. O mais velho perfila no tipo talvez menos comum – o dos que o tempo vai descarnando num processo de erosão lento mas implacável, decerto mais conforme com o percurso do fatal retorno à “originária carcaça”. Apesar de pouco mais de cinco décadas que aparenta, é nítido o desbaste das horas vividas.
No mais novo, o moreno rosado, a cabeleira farta, o brilho que lhe adivinho mais do que vejo (intuição de pai) nos olhos, a expressão radiosa, dizem-me que esta criatura está na madrugada da existência, quando o fundamental está ainda para a frente mas pressente já, e há-de vir com o sol da aurora. A esperança está viva neste jovem. Mas algo mais subtil do que a simples aparência, menos material, terá funcionado e me levado a crer que pai e filho é o que eles são.
É verdade que diferença de idades, palpável, ajuda. Mas os olhos do mais entrado nos anos, raiados, e um certo franzir de testa, conciliam-se num sorriso tranquilo, que tem a marca funda do bem querer, da atenção empenhada e desinteressada que só a carga genética, parece-me, poderia ditar.
Lê-se-lhes uma condição simples, mas também uma dignidade capaz de cativar o improvisado observador que hoje aqui e nesta hora consigo ser.
Podiam ter-me passado de todo despercebidos. Nem os ver, apesar de sentados numa mesma mesa de café em frente à minha. Mas não. Creio mesmo que foi esta dignidade simples que me prendeu a atenção, me fez entrar em cogitações e deambular no tempo.
Nesta tarde, de um Inverno daqueles que já só existem nas nossas recordações de menino, o que irradiava daquela mesa e me sorvia a atenção, era a corrente de simpatia que se percebia jorrar entre aquelas duas criaturas e que teria que ter a inconfundível marca do sangue. Se as energias de um se escoavam num sorriso paternal, o semblante do outro espelhava uma bonomia complacente – ou não se estivesse no fulgor dos anos, quando se põe reserva em tudo o que está para trás – que se traduzia também num sorriso expressivo e franco, duma docilidade que teria de ser filial e parece ter entrado em desuso nestes tempos (que às vezes até parece serem de facto os últimos…), que me sensibilizou e, apesar dos cúmulos negros que às vezes quase nos roubam a esperança, nos estimula a acreditarmos ainda no Futuro que está a ser escrito para os nossos filhos.
Antónius

 
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luciusantonius
 
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