Crónicas : 

áfrica na voz

 
Conhecida pelas lutas constantes em tudo quanto é colóquio, pequenas cimeiras, chegando mesmo a mandar uns nervosos ataques aproveitando o facto de as televisões estarem a transmitir em directo para o jornal da tarde. A conhecida Maria Paula desde que chegou a presidente do partido da terra decidiu avançar com o projecto pela qual se entrega de corpo e alma: à nobre causa de pôr um fim ao racismo, à desigualdade de oportunidades, Sim aos valores humanos.

- Estamos no século XXI e é inaceitável que os homens sejam catalogados pela cor da pele!

Frases sentimentais, com alto teor de justiça a que, aliás, angolanos, moçambicanos, guineenses, mulatos, mestiços, cabritos, uniram-se numa votação recorde para eleger Maria Paula à presidência da junta de freguesia de Portuzelo, que daqui a nada, sabe lá alguém adivinhar o futuro, não poderá disputar o governo nas próximas eleições, e quiçá, matar a indiferença ao mundo.

O perfil de Maria Paula, em traços gerais direi que é uma mulher do povo, de braços levantados para o que der e vier, aquela que espera os operários à saída das fábricas, nos bairros problemáticos e, nas bentas dos manda-chuvas, de megafone em punho, aí vai mais um discurso sobre a humanização, valores sócio-culturais, numa desenfreada canseira para a igualdade de todos os homens na terra. Afinal de contas o ser-se branco preto ou mulato é pintar um Deus com todas as cores e torná-lo mais universal. A favor da pluralidade e inter-racialidade, dizendo sempre com orgulho que é branca por fora e negrinha por dentro, depois agita as ancas tal qual uma preta num merengue.

Em casa está com dois rapazes pequenos a crescer e uma rapariga bem crescida, Maria Paula sempre soube conciliar a família com a política, dando provas em entrevistas que tem África na voz.

Mas a sua filha mais velha já dá nas vistas lá no bairro e os sabidolas olham-na de outras maneiras, tentam adivinhar o que vai por debaixo dos decotes.

A Maria Paula tem agora outra luta, menor, é certo, mas que lhe dá uma data de preocupações, é que a serigaita já gosta de ir num bar, chegar a casa depois da meia-noite, esconder dos outros que a sua boca perdeu todo o seu batôn e vá-se lá imaginar porquê. Por muito que Maria Paula cante a democracia, tem os seus bichinhos na cabeça, ao suspeitar que a sua filha anda enrolada com alguém, quer-lhe controlar os passos, não vá ela aparecer com um filho na barriga, e imagine o que os outros poderão dizer, podendo em último caso arruinar-lhe o sonho de fazer carreira política. Só que a sua filha, agora que está provando a loucura da adolescência, parece que herdou a boémia do seu pai quando ele tinha vintes, ao ponto de Maria Paula, certa vez, dar-lhe forte na telha em seguir os passos da sua mais velha numa dessas sextas-feiras malucas. E assim foi. Maria Paula botou em cima do seu corpo branco uma roupa disfarçada, um modesto chapéu para não atrair muito as atenções. No bar de encontro, na esplanada, a uma distância de trinta passos, meia camuflada pelo seu vestido negro, a noite a dar uma boa ajuda à sua camuflagem, Maria Paula podia observar nitidamente a sua filha no meio de um grupo de jovens em que, eles, com umas tiradas picantes, punham seus braços marotos nas cinturas de duas ou três raparigas, enquanto elas sem se importarem, participavam na breca. Entre uma delas a filha da Maria Paula, que parecia gostar do clima, principalmente da forma com o Jesualdo, negro como carvão, rapaz sossegado, com uma esperteza para as matemáticas, a punha a fazer contas ao coração.

Ou por julgar que os rapazes queriam tomar as raparigas por lorpa, ou porque as reuniões de assembleia tomam-lhe muito tempo e tem a desculpa de não estar habituada a estas modernices, sem muito bem entender se aquelas trocas de mimos eram de amizade ou de algo mais, ainda assim, em jeito democrático, Maria Paula decidiu avançar para perto do grupo como se nada fosse, exibindo o seu ar desportivo, a sua confiança política ao rubro, dando um olá geral à rapaziada. Ao darem conta que aquela pessoa é a tal de quem se fala nos jornais, a nobre idealista, soltaram uns valentes elogios, pois estar ali cara a cara com a número das mulheres que fará história no mundo. Era uma sensação de levantar cabelos. Feitas as cerimónias de apresentações e felicitações, após a euforia amainar, a Maria Paula, como quem não quer a coisa, aproximou-se da sua filha, suavemente, com o seu sorriso afixado, que só ambas entendem o significado, com uma das mãos em pala sobre a boca, para que dela não se perceba uma única palavra, sussurou-lhe com ordenança aos ouvidos:

- Vê lá o que queres da tua vidinha, porque nem penses em meter um preto lá em casa, ouviste?!

E Maria Paula foi-se embora, despedindo-se da malta com uns ya mans e curtam bué. E os brancos e os pretos aplaudiram longamente a mulher que um dia matará a desigualdade. Mas com palavras.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/06/2009 15:41  Atualizado: 11/06/2009 15:41
 Re: áfrica na voz
Muito boa a sua crônica, Flávio.
Por isto nosso mundo caminha assim como está.
A hipocrisia reina...
As palavras criam, mas precisam da ação.
Palavras apenas, não uma convicção a nada levam.


Abraços.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/06/2009 16:02  Atualizado: 11/06/2009 16:02
 Re: áfrica na voz
COMO ESCREVES BEM AMIGO...UM DOM DE APLAUDIR EM PÉ ,SEU TEXTO NOS DIZ MUITO,REFLITAMOS SIM COM SEU RELUZENTE TEXTO E LHE DIGO A DESIGUALDADE POR COR RAÇA RELIGIÃO ME FERE A ALMA...SE QUISER LEIA MEU TEXTO VOU CONTAR VERDADES,E TE DIGO NÃO SÃO SÓ PALAVRAS DA MINHA PARTE
ABRAÇOS
MARY K

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/06/2009 19:15  Atualizado: 11/06/2009 19:15
 Re: áfrica na voz
Disseste tudo sobre um mundo que é, e sempre da forma que muito aprecio!
Um abraço