Aqui, na noite, onde me sento e me sinto
ausente de mim, mesmo em mim presente,
olho o cintilar frio das estrelas trementes lá longe.
É à dolorosa luz cintilante das estrelas nesta noite
de Deus e do Diabo… que eu me vejo só!
Penso estar em sítio nenhum e ao mesmo tempo
estar em todo o lado.
E escrevo. Escrevo de cabeça dorida e fervente,
em fúria. Como se estivesse possuído
por alma penada e ruim. No meio desta beleza
calada da noite, oiço ruídos estranhos
a dominar as minhas sensações e dores.
Longe, mas perto, numa distância tão curta
e tão longe que eu não sei definir, um excesso
de ruídos toma de assalto a minha cabeça
e perturba-me o pensar. Perturba e cansa
ao mesmo tempo. Porque o pensar, além de incomodar
muita gente, também cansa e faz doer.
Escrevo com febre. Com uma febre febril
e doentia, que nem me deixa pensar o que escrevo.
Falta-me a melodia. E das palavras a harmonia,
também. E a rima. E tudo o que dá beleza ao verso.
Mas para quê dar-lhe a melodia e fazer rimar o verso
como o verso clássico requer, se essa mesma melodia
e essa elaborada rima distrai?! Distrai quem lê
e afasta-o da verdadeira essência do que se quer dizer.
Do que se diz e do que se quer entender.
Como eu mais gosto de escrever é com o amigo
Álvaro de Campos por perto. Ranger os dentes
enquanto escrevo à dolorosa luz das lâmpadas
eléctricas da rua. Dolorosas e frias. E nuas. De gelo.
Ou da sua fábrica. Escrever com fortes espasmos
como o ranger das máquinas, da sua fábrica, em fúria.
Escrever de dentro de mim, vindo de fora de mim
aquela força hercúlea de escrever. E de dizer,
escrevendo. Dissecar os nervos das correias
de transmissão, gigantes, que fazem as rodas
dentadas girar e engrenar por aí fora, fúrias de vida
com ruídos ensurdecedores. Beijar as pedras com a força
dessas engrenagens todas, que se beijam e abraçam
entre elas para fazer girar e imprimir movimento.
Vós oh máquinas em evolução constante no sofrer
do meu pensamento, parai.
Parai um pouco e deixai arrefecer esta minha cabeça
dos vossos ruídos ensurdecedores, tão cansada.
Gostava também de fazer versos estrondosos
como o estrondo da guerra que abomino.
Versos estrondosos que pudessem despertar
consciências tão adormecidas. Versos estrondosos
que cantassem o tempo presente e passado
e dessem ao futuro um mundo melhor.
Versos rugindo, rangendo, ciciando… como se fossem
vestidos de seda fazendo mil carícias e excessos
nos mistérios do corpo que envolve a mulher.
À luz das dolorosas estrelas espalhadas no céu
continuo a escrever. Quero o meu exprimir
entendido, rasgado em epopeias de quase-silêncio
comprometedor de um épico-lírico que se perpetue
no tempo. Mas o meu exprimir-me em verso,
é de uma inutilidade ruidosa, ás vezes,
e tem harmonias que nenhum poder literário deseja.
Rasga-me o silêncio, a carne.
Nesta noite cristalizaram-se as estrelas no céu.
Todos os astros. Estão mudos, calados, e o silêncio
cintilante penetra-me ruidosamente nos ossos.
E no cérebro também. Rasga-me esse silêncio, a carne, já
completamente dilacerada antes de a chegar a rasgar.
Ah… como eu desejava ser a pedra calada do caminho
para evitar contratempos! Mas não consigo submeter-me
ao silêncio. E ser a montanha esquecida no horizonte
iluminada pela prodigiosa giesta de Maio
e bafejada pelo inebriante odor do rosmaninho.
Mas prefiro ser o tempo agreste que não ilude nem engana
e a picada da vespa que desperta mesmo fazendo doer.
Ouvir a flauta do pastor, que encanta a melodia
das aves. Ser pedra inanimada mas que sente
a Natureza por dentro de si. Antes ser pedra que ser
a dolorosa e fria luz dos candeeiros eléctricos da rua.
Ou o incomodativo chiar dos eléctricos na calçada.
Antes, que ser o ensurdecedor barulho dos motores
e correias de transmissão das fábricas mal iluminadas…
…antes, que ser isso tudo, ser nada!
Poema publicado no Jornal "Rostos"
e no Recanto das Letras em 30/11/2007
Código do texto: T758969
de "O Livro das Inquietações"