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FLOR DE SAL (Excerto III)

 
DONA MARIA MADALENA RECEBE UMA VISITA INESPERADA


Dona Maria Madalena recebe, entretanto, uma visita inesperada que veio aumentar os seus já avultados receios: Manuel Faria, conhecido pelo “Enguiça”, capataz de seu tio, decerto que não empreendera tão cansativa, como discreta, viagem em vão. Sampaio e Cunha ainda tinha bons amigos entre os da União Nacional lá da terra e por eles soubera que sobre Gouveia e Mello e sua sobrinha haviam sido solicitadas informações detalhadas, só requeridas em caso de ocorrência grave, o que o tio logo suspeitou. Atento, tomara também conhecimento da deslocação ali de três acólitos do cacique local da vila ribatejana. Dissimuladamente, acabara por saber ao que vinham e que se resumia em tentarem carrear provas da infidelidade política de um ou outro dos visados e do seu comportamento moral e cívico, fosse o que fosse que tal significava para aqueles seres mesquinhos. Não foi pois difícil estabelecer ligação a Castro Franco, cada vez mais demente por alcoolismo, mas nem por isso menos malvado e cada dia mais persistente.

(Castro Franco, apesar da decadência moral e física em que caíra, não querendo assumir, por desonra, perante os seus pares, os criados e o povo, a deserção da esposa, muito menos intentando um divórcio, que acarretaria para si e família um labéu indigno, pôs a correr a versão de que a saúde física e mental de Maria Madalena era de tal forma delicada que os ares da serra e apoio de família chegada constituía uma necessidade terapêutica, na qual, na verdade, poucos acreditavam, mas que, face ao poderio do fidalgo, só circulava sob a forma de rumor por entre as gentes do lugar.

Não deixara, porém, de tomar como único móbil da sua inútil existência, a vingança, e apesar de tantos anos volvidos, voltou à carga assim que lhe chegara aos ouvidos, por via política, dos dissabores por que passava Gouveia e Mello. Abraçara, desde o início, o Estado Novo que nascera da Revolução Nacional e inscrevera-se na Secção Local da Legião: A pedido dos seus correligionários carregou nas tintas e traçou do secretário da Câmara um retrato sinistro de um iníquo e perigoso conspirador. Mais, dispusera-se não só a depor como a arrolar um conjunto de capangas, aos olhos dos quais Gouveia e Melo desafiava o próprio diabo...)


Maria Madalena ouvira Manuel em profundo silêncio, que não era nada que não suspeitasse. Sem alardear as suas preocupações, indagou deste pela família mais chegada, a tia, as primas, os amigos que aí deixara. Manuel, porém, bem instruído pelo tio, e perspicaz, repetia a mensagem, para que não restassem dúvidas: a situação parecia ao senhor seu tio grave e Gouveia e Mello que se acautelasse, pois que pelo empenho e sanha dos emissários, não se tratava de discórdia passageira e ganhara contornos políticos que complicava mais ainda a situação.

A Senhora, após providenciar alimento e bebida para Manuel, assentiu que não contaria nada ao marido, mas que tudo faria para que este levasse a sério a tramóia que lhe fora preparada. Manuel assim como chegou partiu: discreto, esgueirou-se, mal a tarde caía para apanhar o vapor para Lisboa, esquivando a encontrar-se com o Advogado, que assim havia sido aconselhado.

Enquanto aguardava a chegada da filha da escola, o rosto de Maria Madalena reflectia apreensão, que todavia o marido não lobrigou, dada a serenidade que se esforçou por manter. Servida a ceia, indagou displicentemente o marido sobre como tinha corrido o dia, e percebeu que também ele dissimulava uma preocupação crescente. A sua esperança é que se aproximava a altura de ir a banhos e por acção do sol e do calor que alumia as almas – pelo menos no caso dela – talvez que quando volvessem tudo se tivesse esfumado e a vida voltasse à tranquilidade provinciana de outros tempos.


Do romance histórico no prelo "Flor de Sal"

 
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arfemo
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Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 08/06/2009 22:15  Atualizado: 08/06/2009 22:15
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
Localidade: Lagos
Mensagens: 2214
 Re: FLOR DE SAL (Excerto III)
Parabéns pelo enredo bem tecido e pela densidade psicológica que imprimiu às personagens.

Um abraço


Enviado por Tópico
j.sofia.bernardes
Publicado: 08/06/2009 22:26  Atualizado: 08/06/2009 22:26
Muito Participativo
Usuário desde: 08/05/2009
Localidade:
Mensagens: 54
 Re: FLOR DE SAL (Excerto III)
Bem estou desejosa de conhecer o livro: pela amostra Maria Madalena vai ser a protagonista do romance, ousado para a década de 30 do século passado...

A prosa adequa-se aos tempos relatados com "engenho e arte". Até breve

Bjos
Sofia


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/06/2009 23:13  Atualizado: 08/06/2009 23:13
 Re: FLOR DE SAL (Excerto III)
hummm.mmm , mais nao digo..rsrsrs
gostei muito
estou à espera de ler mais...
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Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 09/06/2009 00:00  Atualizado: 09/06/2009 00:00
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
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Mensagens: 4246
 Re: FLOR DE SAL (Excerto III)
BELA A MOSTRA QUE TENS NOS PROPORCIONADO
SOBRE A FLOR DE SAL. Entendo que como a
obra está no prelo, devam cessar as publicações,
mas esperemos o livro. Excelente Arfemo!
Beijos!


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 09/06/2009 19:54  Atualizado: 09/06/2009 19:54
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: FLOR DE SAL (Excerto III)
Depois de ter lido os 3 textos, rendo-me à forma como nos apresenta os personagens e como nos traz numa narrativa fluente e agradável uma história deveras interessante.
Dou-lhe os meus parabéns e espero ter oportunidade de ler mais textos seus já que na minha modesta opinião é na prosa que parece navegar com uma à vontade ilimitado.
Abraço forte,
Vóny Ferreira