INSTANTÂNEO
O pensamento rasga o tempo numa vertigem. De repente está no fim do mundo. Se calhar no principio de outros mundos. E rasga o tempo porque lhe passa à frente em duas penadas. Este, apesar de lesto e imparável, às vezes ilude-nos, parece parar e até recuar no próprio tempo que é. Pensamento ninguém já o apanha. Bem isto a propósito da coisa mais prosaica que se possa imaginar: um autocarro que acaba de passar ali na minha frente. Não sei porquê, mas essa máquina transportadora de gente, foi o motor, o arranque para uma viagem louca pelo meu pensamento. Do autocarro saltei para outros meios de transporte deste tempo e logo para outros lá longe no passado distante. Num ápice estou a entrar num comboio com a família, que saia da estação ainda de noite e cujo destino era o Porto. Havia euforia em nós, os miúdos. Já instalados há algum tempo o comboio começa andar, mas logo a seguir constatamos que ele afinal estava parado. Outro que estava ao lado é que se tinha posto em marcha. Isso baralhou-me a cabeça até entender o que se passara. Decidido assim neste instante da minha meia idade a seguir a rota do pensamento assim iniciado com o prosaico autocarro, estou a ver-me passar o túnel do Juncal e a ver a preocupação das pessoas a fecharem as janelas para que o comboio se não enchesse de fumo ( claro a juventude de agora não sabe ao que me refiro). Mais um tempo e estamos a chegar ao Porto. Saímos na estação de S. Bento, que é um espanto, com azulejos nas paredes a recordarem episódios da cidade que um tio que nos esperava nos explica. Transpor as portas da estação foi confrontarmo-nos com a cidade propriamente dita. Era a primeira vez que cá vínhamos. A intensidade dos carros e aquelas carruagens amarelas (chamados carros eléctricos) faziam um típico barulho no momento do arranque e paravam ou andavam às ordens de um não menos típico toque de campainha. À mistura com a gente do povo que enchia esses marcantes carros e com uns tantos rapazes de rua que por traquinice ou imperativo económico, se dependuravam no seu exterior, era digno de ver-se o ar solene de um que outro cavalheiro, enchapelado, de boquilha no canto da boca e o cotovelo de fora da janela numa atitude introspectiva que se não coadunaria com um qualquer plebeu. Todo este clima despertava em nós um sentimento indizível, a consciência de que estávamos na grande cidade. De alguma maneira um sentimento de importância iria viver em nós por alguns dias. Como passamos lá essa noite, na hora de irmos para a cama e depois de um passeio que nos foi proporcionado na Avenida dos Aliados, a noite foi algo agitada. Parece que estou a ver, antes de adormecer, a intensidade do movimento, sobretudo as luzes dos carros que me enchiam a retina de uns olhos a convidarem já para o descanso. Esta primeira ida ao Porto ficou no meu registo. Diga-se de passagem, um registo que me é caro. Isto foi uma fracção de segundos, porque o prosaico autocarro ainda vai além a fazer a curva.
Antónius