Às vezes o rouxinol do jardim canta uma melodia mais triste.
Ou será que a tristeza está em mim e não na melodia do rouxinol? De uma forma ou de outra, hoje acordou-me muito cedo com a melodia.
Cantava sozinho e aquela música entrou-me no quarto, entrou-me na alma.
De repente a multidão de pardais com a camarata montada na laranjeira de folhagem mais densa, começou a cantar, sempre no mesmo tom de voz e ritmo repetitivo. O rouxinol quis ser maestro, mas não foi capaz. A multidão caótica tolheu-lhe os braços, as asas. Sentiu-se impotente, mas ainda assim a sua voz de barítono soava afinada acima do tom do ruído das vozes dos pardais.
A madrugada fresca e sombria trouxe chuva forte que ao bater com violência nos vidros, me fez mudar a atenção e por breves instantes deixei de ouvir o bando e o rouxinol. De repente o ruído da chuva que caía a pique nas janelas do sótão transportou-me para o mundo da gente que entretanto começava a passar, a ir para o trabalho, cortando com os escapes dos carros o silêncio.
Como as pessoas acordam cedo e partem para o ganha pão ou ganha fome, sem sequer terem ouvidos para o rouxinol cantante!
Parece impossível que haja tanta gente a cujos ouvidos não chegue outro som que não o da sua voz e o das suas rotinas alienantes!
Foi no meio destes pensamentos que transpus a orquestra caótica dos pardais para o mundo dos humanos.
Os pardais partiram para o saque diário, de tudo o que de valioso e comestível encontram. No caos da sua madrugada, em vez de cantarem, emitiam sons de conjecturas, de golpes baixos, de entrujices. O rouxinol bem intencionado não foi capaz de lhes acertar o ritmo e o tom para que os pudesse demover dos seus vis intentos. Continua a cantar sozinho, uma canção já mais triste mas igualmente melodiosa e bela, numa sonoridade de soprano.
Está cansado, mas não desiste e tem ainda esperança que mais rouxinóis se lhe juntem para que, sendo muitos se sintam mais fortes.
Cada vez mais proliferam pardais sequiosos e famintos, neste mundo dos humanos. Cada vez mais os rouxinóis se sentem mais impotentes para orientar a orquestra.
Os gaviões, chefes de todas as orquestras, que poderiam meter os pardais nas gaiolas, planam e preparam a melhor ocasião para enclausurar os rouxinóis cantantes, não vão estes com o seu belo cantar, espantar as suas preciosas presas.
No meio disto tudo onde estou eu, simples mortal, que não sou nem gavião, nem pardal, mas que de tão frágil ter a voz, também não sou rouxinol?
Estou nesta insignificante parte do cosmos a levantar a pouca voz que tenho para a juntar à tua, a de todos os rouxinóis e todos seremos muitos, teremos muita determinação e cortaremos o bico e as garras de ave de rapina aos gaviões, já que nenhum nasce sem elas. O que poderão os rouxinóis fazer aos pardais?
A ti rouxinol do meu amanhecer eu peço, continua a cantar!…
Quisera eu ser poeta
Quisera eu ser pintor
Escrever telas e pintar poemas
Escrever, pintar, pintar,escrever
A humanidade com muita cor