Prosas Poéticas : 

FLOR DE SAL (Excerto)

 
DO CASAMENTO INFELIZ DE MARIA MADALENA E DE COMO ELA SE ACABARA POR LIVRAR DELE


Nos já longínquos anos trinta do século passado, aconteceram coisas extraordinárias na Vila, na altura pequena povoação ribeirinha do Tejo, afeiçoada aos toiros e farta em marinhas de sal, de casario baixo, disposto paralelamente ao rio, agradável à vista e propiciador de encontros ocasionais entre vizinhos. Naquele lugar, onde o tempo era uma sucessão de dias sem grandes motivos de interesse, os hábitos sociais eram um bálsamo para a acídia e um refúgio para o tédio.
Maria Madalena tinha ainda bem presente a forma como tivera de enfrentar a sociedade da vila onde fora nascida e criada, tudo porque ousara libertar-se da clausura de um casamento infeliz, mesmo se o marido, alcoólico inveterado e mulherengo, lhe batia até deixar marcas, entre outras ofensas que preferia agora ignorar. Na inocência dos seus vinte anos, e se a principio acolhera com resignação aquela escolha da família, uma revolta surda ia-se apoderando dela, até à gota de água de uma amante mantida pelo cônjuge, sem pudor ou recato. Desobedecendo à lei e aos costumes, resistiu tenazmente às fantasias libidinosas que Castro Franco, o marido, de quando em vez, sobre ela, qual presa agrilhoada, intentava perpetrar. Valera-lhe a mãe, senhora bondosa e austera, que conhecendo o descalabro físico e moral em que a vida da filha se havia transformado, lhe fornecia discreto, mas vital apoio, naquela luta desigual pela dignidade. Ajudara-a até a afastar-se, a pretexto de maleita do espírito, para casa de uma tia, numa vila que distava mais de duzentos quilómetros por entre acessos ruins. Aí ficou, até que as suas faces voltassem a ficar rosadas e, por vezes, até, chegar a assomar naquele rosto doce, um sorriso, se não de felicidade, pelo menos de alívio pela distância e esquecimento que aquela sempre traz.
O marido, contudo, não desistira e ameaçava constantemente ir por ela, apesar de advertido para o facto de a sua presença não ser benquista e nisso o tio mostrava uma bravura diferente do pai e, economicamente bem acolchoado na vida, dera ordens aos criados para manterem discreta vigilância a fim de se assegurar que Castro Franco não voltava a contactar a sobrinha sem o consentimento dela. Ameaçada pela justiça, fora nesse contexto que haveria de conhecer e apaixonar por Gouveia e Mello, que após terminar o seu curso de direito, se fixara, provisoriamente, na terra de origem dos pais, onde começara a exercer advocacia. Fora nessa qualidade que o tio os apresentara e ele passara a frequentar, cada vez com mais assiduidade, o solar da família.

Os serões eram agora mais animados com a presença quase diária do Advogado que, apesar do seu ar sisudo, parecia transfigurar-se na presença de Maria Madalena. Esta, por seu turno, quase se esquecera da triste condição em que, ainda tão nova, se vira mergulhada, sem vislumbrar saída, nem ânimo para o fazer. Quando a jovem senhora, a instâncias do tio, se recreava tocando, com graciosidade, peças de alguns conhecidos compositores clássicos, que lhe evocavam uma infância feliz, onde todos os sonhos ainda eram possíveis, Gouveia e Mello ficava extasiado a ouvi-la, fixando demoradamente aquelas mãos ágeis que voavam sobre as teclas, provocando sons vibráteis, que não deixavam de o inquietar.
Nos finais de tarde dos dias mais quentes, deambulavam pelo jardim frondoso, plantado há mais de um século por Moreira da Cunha, avô de Sampaio e Cunha, seu tio. Fora aí que, certo dia, Gouveia e Mello, recatadamente, mas com ternura, lhe endereçara tímidas palavras que faziam adivinhar intenções que iam para além da simples amizade o que, decididamente, lhe fez estremecer o coração, apesar de não ser nada que já não suspeitasse.
Apesar dos seus esforços, não conseguiu evitar que, indomáveis, um par de lágrimas fossem mansamente caindo pelo rosto, enquanto lia a prosa que, sob a forma de alegoria, não podia ter outro destinatário senão ela.

Do livro no prelo “FLOR DE SAL”

 
Autor
arfemo
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1021
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
8 pontos
8
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
j.sofia.bernardes
Publicado: 06/06/2009 21:56  Atualizado: 06/06/2009 21:56
Muito Participativo
Usuário desde: 08/05/2009
Localidade:
Mensagens: 54
 Re: FLOR DE SAL (Excerto)
O capítulo deixa água na boca. Os anos trinta do século passado é um momento excepcional da nossa história e tão mal conhecido. E contudo é o emergir do salazarento regime. O que lhe terá dado causa? Boa pergunta?

A compreensão do papel da mulher que aqui vivamente retrata é essencial para ler os dias de hoje. Aguardo data do lançamento. Está para breve?

Bjos


Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 06/06/2009 22:03  Atualizado: 06/06/2009 22:03
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
Localidade: Lagos
Mensagens: 2214
 Re: FLOR DE SAL (Excerto)
A sua prosa é fluente, rica e gráfica. "Prende" claramente o leitor! Gostei do modo como "entrou" nas personagens para no-las dar a conhecer. Espero que publique o excerto seguinte!

Parabéns!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/06/2009 22:13  Atualizado: 06/06/2009 22:13
 Re: FLOR DE SAL (Excerto)
Boa noite,
prendi-me na leitura e fiquei querendo mais...

gostei muito,,,, Um jinhos T!na


Enviado por Tópico
Joabreu
Publicado: 06/06/2009 23:02  Atualizado: 06/06/2009 23:02
Muito Participativo
Usuário desde: 10/05/2009
Localidade:
Mensagens: 78
 Re: FLOR DE SAL (Excerto)
Boa Noite Arfemo,

Deixou a sedadaspalavras para retornar no tempo? Pois a mim parece-me que são uma e a mesma coisa, mesmo quando escreve sobre os horrores (e o salazarismo não se recomenda), esconde as rugas mais salientes e enaltece a vida. Pode publicar mais um pouquinho?

Bjos