Contos : 

Pensamentos de um adúltero...

 
Entrei em casa, estavas de avental a acabar de lavar a louça do jantar, sorri-te enquanto fugi para o escritório, tu nada disseste... pensei em mil e uma desculpas para inventar, precisava de sair, esta casa tira-me vida, não é minha. Passei na cozinha e não estavas, passei no quarto dos miúdos e não estavas, passei no nosso quarto e não estavas, peguei nas chaves do carro e saí, estavas sentada no banco de jardim olhando a relva. "Estás bem?" perguntei-te eu com medo que me respondesses que não e me obrigasses a ficar contigo mais tempo do que o que eu queria, tu acenaste afirmativamente e eu já de saída disse-te com um sorriso no rosto "Ainda bem. Vou dar uma volta!".
Andei às voltas pelo bairro, parei num café, tirei tabaco na máquina, sentei-me no canto a observar os movimentos ao meu redor, uma mulher cantava ao som das guitarras, o garçon muito simpático trouxe-me o licor beirão do costume, estou a ficar velho e ainda não aprendi a amar-te, entre goles no licor beirão e guitarradas ainda dá para chorar um pouco e recordar aquele momento, nós dois tão jovens cheios de vida no olhar, no coração o amor aos saltos, seria amor? Hoje sei que não, é já tarde para to dizer mas sei que também o sabes, pensei que com o tempo aprenderia a amar-te, hoje sei que será impossível, nunca conseguirei amar-te...
Atrevo-me a ir cantar também, com o copo de licor beirão na mão, as palavras saem como que arrastadas e pausadas, tropeço nos fios do microfone, as pessoas olham-me com pena, choro muito agarrado ao copo, choro o passado que foi e o presente que poderia ser, choro os olhos dos pequenos que não têm culpa, choro a pena, choro a falta, choro a vontade que tenho de partir rumo a não sei onde e abraçar-me a outro corpo que me espera pacientemente.
A noite já vai alta, expulsam-me do café, saio com a bem mas com uma garrafa de licor beirão na mão. Páro na esquina da rua, uma mulher caminha atrás de mim, olho-a enquanto me deixo cair na teia sedutora e provocadora daqueles cabelos negros que lhe caem sobre os seios que se avistam por baixo da camisola branca. Não são precisas palavras, para quê? Quando o desejo surge o melhor é não o conter.

"Faltaste ao trabalho mais uma vez, qualquer dia despedem-te!"
Quero lá saber do que dizes, o que quero é dormir, passo por ti sem te ver, só te ouço os gritos atrás de mim, deito-me na cama e deixo-me dormir, a próxima noite será longa, tão longa quanto esta? Não sei, se me der o mesmo prazer será bem-vinda.

"Papá acorda, vamos ao circo hoje?Sim? A mãe disse que tu é que sabes.". Acordo sobressaltado com os gritos das crianças, "vamos onde vocês quiserem mas deixem-me dormir", "porque não nos levaste de manhã à escola?", há alturas em que preferia nem ter de os ver para não ter de me justificar com mentiras, "O pai esteve a trabalhar a noite toda. Vá, vão lá ter com a vossa mãe que o pai vai tomar um banho". Se não os amasse tanto já me tinha ido embora, olho a tua fotografia, não foi a teu lado que eu sonhar estar, não é contigo que eu quero ficar, não, não são os teus lábios que eu quero beijar, não é o teu corpo que quero abraçar, não és tu, não quero que sejas tu a meu lado na fotografia... gostava que isto fosse só um sonho mau...
Vou tomar um banho, logo vou ao circo...


. façam de conta que eu não estive cá .

 
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Margarete
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