Quarta, 20 Junho 2007 às 03:46
Dois cães lembraram-se de ladrar ao desafio no silêncio de que precisava. Dei voltas, li, nada! Os canídeos não me largavam os ouvidos.
Levantei-me. Deu-me uma vontade enorme de pegar no jipe e ir ver a noite. Que não se faz isso, eu sei. Mas precisava de estar Além da segurança.
Começaram a passar em sentido contrário vultos e sombras. Um manto de gotículas de água estava suspenso dos candeeiros mortiços e amarelados.
Os estabelecimentos têm luzes acesas e guardas à porta, dormitando, a arma presa nos joelhos. Têm fardas diversas estes centauros da noite. Cinza, caqui, verdes com remates em laranja, azuis com remates a vermelho.
Uma carrinha de transporte de valores passa com o seu cortejo de centuriões de viseira e arma aperrada.
Carros de que só vejo as luzes ultrapassam-me de repente, como se a pressa desesperada fosse o seu motor.
Há mulheres a vender sacos de pão. Restam alguns dos miúdos que fazem quase direc-tas a vender tabaco, utensílios diversos, rádios, dvd’s.
Passo no sinal vermelho, com cuidado, que aqui não se pára em certas zonas mais expostas. Há vultos de olhos fixos por trás das portas das cabanas de zinco.
Desço à marginal. Passo por uma bomba de gasolina non stop. É pequena a fila, agora, na espera.
Colho meus olhos do mar, dos navios ao fundo, que o trânsito aumentou em direcção à Ilha. Há restaurantes e bares ainda abertos na confusão do exterior. Há música no ar, um hotel a cair de velho e podre, mais vultos escondidos, mulheres de vida fácil na dificul-dade de quem não dorme.
Vou até ao fim da estrada que circunda uma rotunda e volto para trás. Paro no chill’out, bebo um scotch com muito gelo na lentidão das horas frente ao balcão, onde se dese-nham conversas, de ocasião e de negócio, ainda.
Alguém dança na pista quase vazia, que a noite é de música ambiente e o álccol desperta os sentidos.
Dou o último gole para o caminho e saio.
“Eu sou o Jorge!”.
Eu sei que és o Jorge, meu malandro que me cobras sempre uma gasosa por alegada-mente me guardares o jipe, com se não viesses a correr do teu canto quando me vês sair…
“Boa noite, pai” …
Sabe-la toda, rapazito simpático, que me dás a volta com esse teu ar meio humilde, meio gaiato, cuja vida te ensinou a viver de expedientes e o expediente te governa.
“Cuidado com os bandidos, janela fechada e portas trancadas”…
- Obrigado – digo eu com um sorriso. Como se as portas não estivessem já trancadas e os vidros fechados…
Quando arranco, vejo-o correr para o jipe seguinte, no seu “Eu sou o Jorge”, como se pudesse haver outro Jorge igual a ele…
Falta iluminação pública na rua onde entrei quando virei á direita, saindo da marginal. Os faróis iluminam o piso, sem buracos de maior, que logo ali, à esquerda é o hotel da moda, aqui. Onde políticos e homens de negócios se acotovelam nos últimos risos de ocasião, antes de deitar.
Sigo em frente, quase sem olhar a profusão de jipes topo de gama, com alguns motoris-tas ainda a dormitarem sobre o volante, à espera do patrão. Como se não houvesse horas para esta gente, e seus criados às ordens, a tempo inteiro.
Subo a rua por entre fantasmas que se arrastam na noite perdida e escura. Rapinadores dos silêncios e da escuridão. Pressinto-os!
De regresso aos candeeiros acesos, saio da avenida e entro numa rua perpendicular á minha. É estreita. Vou de máximos, que não e cruzei com ninguém.
É quando o vejo num relance. É uma estátua. Negra. Está sentado na rigidez de uma soleira. O cabelo e as barbas cresceram desmesuradamente na sujidade. Está coberto, na sua imobilidade, de sacos do lixo. Sim, de sacos do lixo! Azuis, brancos, pretos. E cheios.
Passei a mão pelos olhos, incrédulo. Não podia ser. Dei a volta no cruzamento seguinte, contornei o quarteirão, reentrei na rua, muito devagar, e lá estava ele! Hirto. Como se nada mais existisse senão a sua estátua.
Cometi uma loucura, eu sei. Todos vão dizer-me. Na madrugada de uma das cidades mais perigosas do mundo à noite, destranquei as portas e saí com uma nota na mão.
Só os olhos se mexeram. Não sei se em agradecimento ou em censura. Que não conse-gui ler nos seus olhos.
Foi só quando arranquei que o vi a estender uma mão sobre o saco onde depositara a nota e a beijá-la. Sem um sorriso.
Continuei.
Quando entrei no último lanço da minha rua, vi o guarda levantar-se ensonado, espre-guiçar-se. Sabia que era eu!
Estendi-lhe a chave, abriu o portão num “boa noite” arrastado.
Respondi.
Os cães pararam, por momentos, a trova. Só o tempo de fechar a porta.
Subi as escadas, entrei no quarto e atirei-me sobre a cama. Olhei o tecto e uns olhos muito negros, mas sorrindo, velavam o meu cansaço.