Ontem
Olhava o relógio
E via nos ponteiros uma intenção diferente
Uma força de rebeldia
Que puxava pelas cordas do engenho
E expressava em palavras surdas
Os instantes cessantes
Na maré do cais
Ontem
Não acertava o relógio
Todo o tempo tinha o seu tempo certo
E não havia instantes esquecidos
Lúgubres momentos ecoantes no pensamento
Como obcessivos dilemas morais
Flutuando em lagos de lamúrias…
Na superfície da água…
Hoje
Relógios sem energia
Acerto e reacerto constantemente os momentos que passam
Espero revê-los, passados no amanhã
Decerto a fantasia irá chamar por mim
Ao amanhecer
Decerto também a noite será como uma ruína de um castelo de uma história de príncipes e princesas
Decerto… a rua toda perca o sentido de caminho
Porque… decerto o destino já se desfigurou
Em algum areal de uma praia qualquer
Num qualquer dia de húmido nevoeiro
Em qualquer espelho derretido… uma saudade diluída nas lágrimas alheias de uma doutrina espectral inelutável
Em que tu… escutas… calada…
O som do silêncio…
Mas…
Tic… tac… tic… tac… tic… tac….
O relógio afinal continua a tiquetaquear… e o tempo não parou…!
Ainda há esperança para que o fim não seja hoje… agora… já…
Ainda há talvez uma fórmula nova à espera de ser descoberta…
Ainda há…
Ainda há…
Frieza…
Calor…
Ainda há… também… madrugada… e sol e dia… e noite e sal nos pratos feitos de liberdade prisioneira de vãos espaços… unidos na ausência…
E há… solidão a espantar a alma… e tristeza a fechar os olhos e a estigmatizar as mentes…
E medos… há medos que fazem surdos os ouvidos e cegos os olhos… e gestos que mudam tudo…. no momento certo…
Ainda há… saudade…
Ainda há… amor… também…
Esperança… afecto… ternura… feridas abertas…
Facas afiadas e revolveres feitos de letras e palavras… em que as balas são lançadas nas madrugadas em que os sonhos não condizem connosco…
E há loucura….
Ainda há… lucidez…
Lucidez… em cada vez que vejo a minha loucura… a minha febre… o meu… instante…
E batem… bombas…
Espelhos de vidros impossíveis… estalam…
Rotas cruzam-se…
Testemunhas rendem-se à evidência de não terem testemunhado nada…
E mentiras penetram fundo nos lençóis plasmáticos da alma destruída…
E ainda… há… imensidão…
E a cor do asfalto não é mais da mesma cor e os trajectos são feitos de mármore e o chá está aqui… a arrefecer… e a garganta não me deixa falar…
Estou numa noite em que não sou eu…
- Então… meu velho amigo? Como estás?
- Cá estou…! Sou o mesmo nos mesmos tecidos e nas mesmas vitrines de abstração.
E afinal… depois de nesta noite…
Ter havido tanta noite tão cheia de noite…
Cesso-me aqui…
E adormeço concentrando atenções no ritmo do passar dos segundos…
Fecho os olhos exaustos e saio…
Afinal…
Ainda há um ser humano aqui.
Pedro Campos.
Pedro Campos.