O tempo cavalga por cima de todos os prados, todos campos e montanhas, por cima de todos os homens e mulheres, génios, medianos ou brutos, normais, anormais e outros, o bebé faz-se criança, as crianças pulam para ser jovens, estes fermentam e transformam-se em homens, os homens arrastam-se pela vida, agarrando-se às esquinas, árvores e postes que encontram no caminho, procuram um porto onde fugir das vagas que sempre os empurram, tentam abrandar o ritmo da existência que os leva lenta, mas irrevogavelmente, até à velhice, velhice esta que nada mais é que a morte em vida, se a Morte tivesse um rosto seria o da velhice, nem um simples brilho no olhar se encontra num velho, são cadáveres animados por forças que já não são deste mundo, é vida que se esqueceu de se apagar, é morte que ainda não se lembrou de se anunciar, nem se pode dizer que vivem os velhos num limbo, no balcão entre a existência e a não-existência, na fronteira entre o ser e o cessar, não, passaram já completamente para lá, para o vazio silencioso, para a vastidão incolor da não-vida. Mas atente o leitor desprevenido que quando se referem bebés ou crianças, jovens ou homens ou velhos, não se fala aqui de corpos, não falamos nós de vísceras e reumatismos, nem de artroses, Alzheimers ou Parkinsons, e quando se fala das crianças, não se intenta aqui apontar para os corpinhos saudáveis, os braços tenrinhos e macios, nem para a pele de cu de bebé, como se diz, ou para os dentinhos de leite em negociação com os chamados definitivos, vem a força dos anos e logo vemos a falsidade de mais este rótulo, quando se fala aqui de bebés, crianças, jovens, homens e velhos, não se fala dos seus corpos, fala-se das suas mentes, e Deus perdoe o enorme lugar comum que é dizer que a idade não está no corpo, e nem é isso que se pretende aqui, pretende-se apenas referir que existe a idade do corpo, sem dúvida, não olvidemos os encarquilhamentos das peles, a lassitude do físico, a languidez dos músculos, ah, a idade é física também, mas existe uma outra idade, a do espírito, a da mente, a da alma, a do coração, não o que bate no peito, entenda-se, e é a essa que nos referimos, a idade do espírito, muitos mancebos já com espírito de velhos e são estes velhos que dizíamos estar já mortos, mesmo que sejam ainda garotos novos, muitas moças com mente de mulher cansada, viúvas na carne e caducas no coração, e muitos velhos levando alma de criança, gozo de bebé, brincam como não brincam os novos, riem como o não sabem fazer muitos homens e mulheres ainda com força nos músculos, incluindo os da cara, dizem que é lá que se encontra deles com fartura, não admira que muitos velhos não saibam já sorrir, cansaram-se-lhes os músculos do rosto, mas fica por explicar por que andam tantos rapazes novos com trombas feias como a morte, parece que deixaram a vida na gaveta da mesa-de-cabeceira, talvez a vistam quando se deitarem, talvez os sonhos que têm durante a noite sejam a vida que não levaram durante o dia, os sonhos lá atingirão os altaneiros picos que apenas eles conseguem, mas esquecendo-se eles, homens e mulheres, da vida novamente na gaveta, no dia seguinte lá ficarão os sonhos mais uma vez a aguardar, talvez no último sono em que adormecerão os retomem, talvez seja no caixão que os sonhos verão então a luz do dia, e será realizado, do lado de lá, aquilo que, no lado de cá, viveu dentro de uma gaveta.
Não precisas de responder às tuas questões. Precisas é de questionar as tuas respostas.