Visita à infância
Hoje subitamente senti-me criança. Insólito capricho da natureza levou-me aos remotos tempos de menino. Por algum tempo senti-me desligado do mundo concreto, ora árido, ora sereno do homem francamente maduro que há muitos anos já sinto acompanhar-me. Senti-me criança, regressado aos pequenos grandes interesses da infância, desgarrado do homem velho que sou, foi refrescante a experiência. De repente vi-me de calção curto e alças cruzadas nas costas, descalço, a refazer-me ainda duma topada que dei de manhã numa trepe de um campo da nossa quinta, se calhar obra dos óculos que comecei a usar por esse tempo e me punham tudo a andar à roda. Foi chata essa adaptação, até porque as lentes eram estupidamente grossas e à conta delas já me tinha espalhado ao subir para o tanque. Só azares nestes primeiros dias de óculos. Esconjurados esses acidentes sinto-me na enorme cozinha da nossa casa, uma espécie de praça central de onde tudo partia e aonde tudo vinha ter. Era lá que estavam as coisas importantes. Era a lareira e os respectivos potes de três pernas ( ainda não sei porquê, porque quatro equilibrava mais) era o fogão a lenha, a preguiceira e, outra coisa muito importante, que era o forno. Ah!, havia outra coisa importante e moderna, que era a máquina a petróleo, que ainda pouca gente tinha. O forno era cerrado com uma tampa, claro, e barrada com bosta de boi. Dessa é que acho que ainda hoje sinto o cheiro a fazer-me náuseas. A iluminação cá na casa é a petróleo, temos por isso quatro candeeiros para resolver as necessidades a esse nível. Á hora de deitar cada um agarra o seu candeeiro e toma o caminho do quarto.
Bem, há uns tempos a esta parte que existe lá em casa uma peça ainda mais sofisticada do que a máquina a petróleo. É o rádio. Esse aparelho fantástico que se chama mesmo assim – rádio e em que se ouve música e conversas de todo o mundo. Este aparelho encantou-nos a todos, até porque era único lá na aldeia, e por isso tínhamos boas razões para nos orgulharmos dele. É que convêm que se diga, lá na aldeia (como em todas as aldeias) não havia electricidade. Foi graças ao engenho do meu pai que dele ouvimos música e notícias. Como era o tempo da guerra, esta é o grande assunto da época por isso estou a ouvir uma noite ao meu pai quando o locutor falava: Olhai, é o Fernando Pessa a falar da guerra. Londres está a ser bombardeada. Parece que ainda hoje sinto o ribombar dos canhões que me chega da imaginação de uma criança de oito anos.
Antonius