Contos : 

A FUGA

 


Era domingo.

Meu pai, minha mãe e dois irmãos haviam ido à cidade tratar de assunto de família. Isso era o que haviam dito quando partiram. Em outras ocasiões todos iam à cidade, principalmente nos dias de festa ou de feira, e esta só ocorria nas segundas.
Eu, ainda pequeno, limitava-me a seguir os caminhos normais de uma criança, entre uma obrigação ou uma brincadeira, por isso nunca questionava as coisas de adulto. Hoje é comum ver crianças dialogando com os pais em igualdade de condições e muitas vezes elas até orientam os pais.
Já deveria passar das onze, quando eles chegaram. Não havia relógio,nós nos orientávamos pelo sol. Uma outra pessoa os acompanhava. Era um jovem de mais ou menos quinze anos que tinha cabelos longos para o nosso padrão de comportamento. Nosso corte de cabelo era sempre feito por nosso pai. Talvez até por economia.
O jovem que acabava de chegar causou espanto naqueles que estavam em casa à espera dos pais. Ele era alto, tez morena e até poderia ser considerado bonito. Vestia boas roupas e usava sapatos, coisa que eu só vim usar depois dos doze anos. Nesta época eu tinha apenas sete anos.
Eu nada sabia sobre aquele forasteiro que seguia meus pais e conversava animadamente com os outros irmãos que estavam a seu lado. Entre eles havia uma grande diferença. Meus irmãos, com pele queimada, mãos calosas, vestiam roupas simples e demonstravam através dos seus atos e modos o jeito caipira. Ele era alto, pele bronzeada, roupas novas e bem talhadas, sapatos brilhando e além de tudo usava certa cabeleira. Na mão direita, uma pequena mala continha todo o seu tesouro.
Ele deveria estar acostumado com sua individualidade e se dirigiu ao meu pai e disse:

- Papai, onde é meu quarto?

Aquela frase, dita daquela forma, causou-me apreensão, pois ele se referia ao meu pai como sendo o seu. Eu, no entanto, não conhecia aquele intruso e forasteiro que tentava naquele momento entrar em nossa restrita vida. O meu mundo eu conhecia bem e era composto por aqueles a quem eu estava acostumado.
Depois que minha mãe mostrou o armador de rede, colocou sua mala no quarto de minhas irmãs, disse-lhe:

-Pode trocar de roupas no quarto de suas irmãs, o seu local de dormir é aqui.

Enquanto falava, mostrava uma rede pendurada nos punhos que ficava no canto da sala, perto da porta de saída. A sala também servia de quarto de dormir, havia armadores de rede em diversos lugares. A casa era pequena e tinha poucos quartos, por isso os homens dormiam quase que todos na sala que também servia de quarto.
Eu ainda nada entendia até que meu pai nos chamou e começou dar explicações aos filhos que ainda não conheciam o indivíduo. Acredito que os outros mais velhos já deveriam conhecê-lo. Os filhos menores ainda não tinham visto aquele irmão que morava na capital. Não me lembro de tê-lo visto antes daquele dia.
Depois das explicações, ficamos sabendo que o forasteiro era um irmão que morava em Recife e que havia sido criado por um tio nosso. Era muito comum, naquela época, parentes criarem filhos dos outros, era um gesto de amizade e um ato de amor. Meu tio não tinha filhos e o recebeu e criou como se fosse seu filho. Entre o meu tio e meu pai havia uma grande amizade, maior que a que meu pai nutria por seus irmãos.
Demorou três dias para que eu pudesse me aproximar dele. Ele olhava por cima dos pobres mortais aos quais admitia serem seus irmãos. Seus modos e seu jeito de andar, vestir e falar era diferente do nosso e somente depois de algum tempo nos acostumamos com ele.
Ele era esquisito, não sabia o que era uma enxada, foice e nada conhecia das coisas do campo.
Depois de abandonar os lustrosos sapatos e assumir umas alpercatas de correias e solado de couro, eu o ouvi resmungar várias vezes alguma coisa que eu ainda não compreendia.
O trabalho para ele parecia um sofrimento. Havia abandonado as mordomias e as praias de uma capital e ali estava no sertão. Além de tudo tinha que trabalhar. Ele nunca havia trabalhado antes, pois meu tio o mantinha e o educava em Recife.
Nós, no entanto, estávamos acostumados ao trato com as ferramentas e as obrigações que surgiam pelas necessidades que a vida nos impunha. Todos os dias, bem cedo, enquanto os menores iam para a escola tentar aprender, os mais velhos, que já haviam “terminado seu aprendizado”, dirigiam-se à roça para o trabalho de plantio e outras atividades correlatas.
Acostumado que estava à boa vida, seguia meu pai por obrigação, mas era comum vê-lo resmungar às escondidas. Ele não deixava meu pai ouvir seus lamentos silenciosos.
Eu o observava e invejava a vida que ele havia tido, pelas conversas e histórias que contava durante a noite para os irmãos. Depois de algum tempo, eu entendi que ele procurava com isso sentir-se superior aos outros, por conhecer outros lugares e ter vivido experiências que nós ainda não imaginávamos.
Quando chegava a noite, pegava uma gaita que havia trazido e arranhava algumas notas musicais que conseguira aprender. Eu, que pouco entendia de música, achava aquilo o máximo.
Ele voltara ao nosso convívio pelos problemas que havia arranjando para nosso tio. Já não queria terminar os estudos e apenas se divertia e curtia a vida nas praias de Recife com os amigos.
Com a mudança brusca que houve em sua vida e com o tempo, passou a ficar arredio e se isolava. Seus resmungos eram comuns porque tinha que encarar uma vida diferente daquela a que estivera acostumado. Na realidade ele detestava trabalhar, nunca trabalhara por não precisar.
Em virtude dos problemas que criou para o tio (pai), este viu-se obrigado a mandá-lo para nossa casa a fim de que pudesse ver e sentir as dificuldades em que vivíamos. Talvez meu tio quisesse fazê-lo ver os dois lados da vida e o privilégio que tinha, quando foi morar com ele.
Aquela estadia em nossa casa iria fazê-lo sentir a necessidade de aprender e dedicar-se mais aos estudos e até comportar-se melhor e obedecer regras, coisa que geralmente nenhum adolescente gosta de fazer.
Muitas vezes invejei-o por ele ter tido aquela oportunidade de morar numa cidade e estudar, mas que ele havia jogado fora, por inconseqüência da juventude. Ele conhecia outros lugares, tocava gaita e sabia ler e escrever. Eu era analfabeto e só aprendera a capinar erva daninha, plantar, colher, levar os animais para beber água no açude e até mesmo matar cobras. Meu conhecimento era limitado ao meio onde vivia.
Enquanto o tempo passava, seguíamos a vida normalmente, ele, no entanto, se tornava cada vez mais afastado e já não falava de suas aventuras e bravatas da sua vida na capital.
Num dia de sexta-feira, ainda bem cedo, quando nos levantamos para nossa lida diária, notamos que a rede dele se encontrava vazia. Embora estivesse armada, não havia ninguém nela.
A principio pensamos que ele estivesse saído para usar o banheiro que ficava a céu aberto. Porém, depois do café, como ainda não havia aparecido, foi quando ouvi pela primeira vez meu pai chamá-lo. Como ele não aparecia mesmo com os gritos do meu pai, fomos procurá-lo.
Depois de horas procurando, encontramos seu cofre, onde guardava suas economias, quebrado, perto da casa. Enquanto o procurávamos várias hipóteses haviam sido levantadas, inclusive de suicídio por enforcamento em algum lugar. Procuramos por todos os cantos e vários chamados foram feitos naquele período, porém tudo foi em vão.
Ao encontrarmos os cacos do seu cofre onde ele guardara as economias, meu pai chegou à conclusão de que ele havia fugido.
Reuniu toda a família, deu as devidas instruções a todos e depois mandou selar sua mula baia e antes de sair disse:
-Vou procurar este infeliz. Vou trazê-lo de qualquer maneira. Nem que seja amarrado.
Ele seguiu bem equipado e com uma farta matula, onde guardava farinha, rapadura, carne seca e uma vasilha com água. Parecia preparado para uma grande aventura e uma viagem demorada.
Montou na mula e seguiu rumo à cidade mais próxima. Enquanto ele se distanciava, eu tremia de medo ao imaginar o encontro dos dois. Ele partiu e nós continuamos nossa vida como se tudo estivesse normal. Meu pai era destemido e muito querido naquela região, por isso ninguém deixaria de ajudá-lo na captura do fugitivo.
Durante todos os dias em que meu pai esteve ausente, meu irmão mais velho assumiu a posição de chefe da família e todos iam desempenhando suas funções a contento.
Vi minha mãe diversas vezes de joelhos, perto de um oratório, rezando e rogando a Nossa Senhora de Fátima que protegesse os dois. Em suas rezas era sempre acompanhada por minhas irmãs. A fuga parecia um tabu, ninguém ousava perguntar a mamãe qualquer coisa sobre ele. Ninguém ainda sabia o motivo da fuga.
Somente depois de vinte e dois dia, meu pai voltou. Vinha caminhando lentamente, quase se arrastando, usava apenas a roupa do corpo e trazia nas costas um saco com algumas roupas. A princípio imaginei que a mula se soltara e fugira por isso ele estava a pé. Ele estava magro e abatido e a barba crescida acentuava ainda mais sua magreza.
Ele vinha só, não trazia meu irmão com ele e seu semblante demonstrava todo o seu cansaço. Parecia um homem derrotado e amargurado por não ter encontrado o filho e, além de tudo, estar voltando a pé. Esta era sua maior humilhação e isso eu só entendi muito tempo depois.
Minha mãe, vendo o estado em que meu pai se encontrava, depois de recebê-lo, perguntou:
- Cadê ele?
- Calma que eu logo conto tudo, estou cansado e com muita fome.
Ele sentou-se por algum tempo numa rede que se encontrava armada e depois de almoçar começou a contar sua aventura, em busca do filho fujão.
Todos estavam ansiosos para saberem o que havia acontecido então ele começou seu relato;
“Depois que saí daqui fui-me informando com todas as pessoas que ia encontrando pelo caminho. Por várias vezes dormi na caatinga, porque não podia gastar com pensão. Somente tive notícias dele quando estava perto da Paraíba. Falaram-me que ele havia passado por ali um dia antes, por isso eu tinha que me apressar para conseguir encontrá-lo e pegá-lo. Quando estava perto de Campina Grande, alguém me falou que ele conseguira pegar um caminhão que seguia para a cidade. Ao ouvir aquilo, pensei que não mais conseguiria encontrá-lo logo que ele chegasse à cidade.”
Papai parou o relato, coçou a cabeça, respirou fundo, bebeu água e antes de reiniciar seu relato pigarreou.
“Ao chegar à cidade, procurei em diversas pensões, porém ninguém o tinha visto. Quando já pensava em desistir, aproximou-se de mim um homem bastante educado que foi logo perguntando”
- O senhor, por acaso está procurando um rapaz, alto, bonito e com cabelos claros?
- Sim estou, você o viu ?
- Claro e até sei o local onde ele está.
“Ele então me informou que o tinha visto pela manhã hospedado numa pensão ali perto, mas que estava muito assustado, por isso não poderia levar-me até lá pois ele com certeza fugiria quando me visse”
- E como vou fazer? Perguntei.
Ele, com toda a presteza propôs:
- Eu vou até a pensão, vejo se ele ainda está lá e depois volto para levá-lo então o senhor pode pegá-lo, antes que ele fuja.
E complementou dizendo:
- Empreste-me sua mula, me espere aqui que vou mais rápido e volto logo.
Neste momento papai parou o relato, baixou a cabeça, como se não quisesse mais falar sobre o assunto, sentia-se humilhado e derrotado
- Sim e depois o que aconteceu? perguntou minha mãe.
Mesmo a contragosto e demonstrando toda sua frustração, levantou a cabeça e respondeu:
- Esta foi a última vez que vi nossa mula arreada. O sujeito era um ladrão que ouviu minha conversa e se aproveitou para me roubar. Era mais cabra safado que vivia de roubar pessoas. Fiquei esperando todo o dia e como ele não voltou com a mula, ainda o procurei por dois dias, depois desisti. Queria encontrá-lo e matá-lo, mas não consegui pistas dele.
- Foi por isso então que o senhor veio a pé? retrucou meu irmão mais velho.
- Sim e foi por causa daquele infeliz que perdemos nossa mula e minha sela de estimação. Como eu estava quase sem dinheiro, viajei vários dias a pé, até conseguir encontrar um caminhão que vinha para estas bandas e aproveitei para voltar à cidade.
Enquanto meu pai falava, demonstrava sua ira e somente depois de muito tempo parou de reclamar do filho fujão.
Tempos depois recebeu uma carta de meu tio informando que seu filho estava com ele e que agora procurava estudar e obedecer as regras normais para um adolescente.
Depois daquele episódio, somente viemos encontrá-lo novamente na década de sessenta quando já morávamos em São Paulo.
Anos depois, com o retorno de nossa convivência, ele continuava maldizendo os dias que morou com meu tio e ainda culpava meus pais por todos os seus fracassos. Eu ouvia tudo e já com um pouco de capacidade de discernimento, analisava cada palavra dele e ficava quieto.
Ele se portava como um ingrato e mal agradecido, tivera dois pais e diversas oportunidades e mesmo assim continuava a reclamar.
Enquanto ele estudara, se divertira na cidade grande, nós havíamos ficado no sertão, tendo apenas o trabalho como divertimento e algumas estórias que nosso pai nos contava. Estórias estas que ele havia lido quando viajara para São Paulo, no início da década.
Ele teve as oportunidades que eu não tive. Foi alfabetizado bem cedo, morou na capital, aproveitou todas as chances da infância e da adolescência e ainda reclamava. Eu, no entanto, somente fui alfabetizado depois dos doze anos. Até aquela data, na roça, a enxada servia de objeto de lazer. Os folguedos de crianças se limitavam em tomar banho e nadar no açude que ficava bem perto da casa ou mesmo correr atrás das poucas reses que tínhamos, montando um jumento, tendo apenas uma corda como cabresto.
Hoje, quando analiso o seu comportamento e quando o vejo colocando-se como vítima, por ter sido criado por um tio, sinto certa indignação.
Ele teve dois pais, duas mães, estudou em boas escolas e mesmo assim se sente um injustiçado.
Depois de analisar cada fase de sua vida, chego a imaginar que sua grande revolta contra meus pais não passa de uma FUGA.







15/10/06-VEM








 
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VanderleisMaia
 
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