"..... É um sacrilégio nos destratarmos tão bem ...... "
Ela não lamenta seu destino; sabe que o noivo a abandonaria sem nunca vir a amá-la.
Do contrário, não a largaria mesmo, jamais!
Tão fiéis os amantes, que não se traem... Seriam por fim iguais...
Ela não o deixou... Apenas não foi. O que haveria então pra regressar?
Ela agradece sempre o inacontecido - rico de infinitudes.
Naquela mesma noite em que estranhamente não adentrou o portal, intuía talvez, que o tom negrume de seu ex-futuro marido, não se permitiria misturar-se aos iguais; posto que, não convém...
Assustado, preferiu, diante do espelho, quebrá-lo em pedaços, pra não mais ver.
Agora, solteira e linda, ela permanece, mesmo viúva.
Já ele, amedrontado em possíveis erros, trouxe pra si mau agouro ao quebrar o espelho.
Exatamente há vinte anos, ela não esperou, simplesmente foi até ele, onde permanece ainda vinte anos depois...
Mas ele não percebeu a presença da paz e pôs-se a esperar covardemente pela sorte. Seria esse o azar: esperar covardemente... Pela sorte...
Ela, de cabeça erguida, sabe que seria melhor, e nada quis evitar; nem tampouco ignorou o convite que ele a fez. Ao contrário, sentiu-se honrada... E feliz...
Chegou a pensar que iria, mas sendo ela dotada de poderes de magia, anteviu que ele não iria.
Pois ele fala em retas paralelas, enquanto a vida é curva e sinuosa.
Quando a qualquer momento linhas em ressonância, por querer, ou "sem querer", se cruzam e bailam entrelaçadas por longas eternidades.
Naquele dia, ela quis; quis no outro também... Ele não viu... Anda de fato cansado.
Por isso, a deixa sozinha e permanece crédulo que é ela que não faz a justa passagem, injustamente.
Por algum motivo, ele sempre acha que qualquer perda, é causa dela.
Imagina que ontem ela o deixou e fica desencontrado... Porque, mesmo não mais tão jovem, ainda não se encontrou, pra encontrá-la com vontade latente, esquecido dos dramas de sua mente.
É tão belo o moço com suas lindas rugas e cicatrizes ainda abertas que não curou.
E adia, com receio de magoá-las ainda mais... Enquanto pensa que a velhice por si só, vai sarar as dores.
Ele, em suas lentes transparentes e arranhadas, enxerga algo turvo, e acha que são os efeitos entorpecidos das causas proteladas que não são necessariamente, especiais.
E num segundo instante, fala das virtudes de seus virtuosos defeitos virtuosos, de suas habilidades musicais no toque das palavras...
Precisa convencer a ele mesmo, enquanto fala pra ela.
Pois ela já escuta seu silêncio, que lhe soa puro aos ouvidos. E do mesmo modo, sua ira lhe soa igualmente pura e musical.
Por um momento, ele se toma de luz e fala do que ambos intuíram e das correntes...
Talvez, não saiba a razão delas, mas sente que existem.
Ela, por sua vez, fica em silêncio... Lamentando não conhecerem seus netos tão mimosos a correr pela sala e por isso dorme bem sossegada a ele abraçada aos domingos.
Ela gosta de sua insônia, que provavelmente continuaria mesmo cansada de com ele existir.
Inquieto, incomodado - ele fala do que não deseja sobre seu desejo, como se soubesse tudo o que ela há de sentir...
E ainda ousa falar, como se não bastasse, da verdade do beijo.
Ele não sabe que de fato ela sempre o beijou... Que o que faz a verdade do beijo, é a vontade latente que a ele antevem... Que o desejo do beijo é que faz o beijo beijar... Que sonhando a boca tão perto, sentindo mais perto, e bem perto, só falta mesmo encontrar, pra beijar... Sem falar... Só beijar... E tudo beijar e beijar...
Ele fala da fidelidade das prostitutas - que não beijam seus clientes, apenas os amores...
Ela diz, que há tempos deixou de ser uma, pois o grande amor de sua vida, é o primeiro que passar e simplesmente a beijar... Como são os beijos, quando se deseja... Simples assim... E por isso tornam-se amores... Os grandes amores... Amar é beijar...
A ela, só cabe lamentar... Que ele, com suas correntes e “virtudes”, escondidas sob a ira, só lhe queiram magoar...
E sabe... Que realmente, apesar de não ser assim que ele sente, há de ser assim que mente: só se vê quando se escuta.
De fato, agora ela percebe que o viu equivocado: viu um outro, menos raivoso - aquele primeiro que ia passar, estando tão perto, mais perto que qualquer outro, lhe parecia tão perto, quase podia tocar... Seria o único enfim, que lhe beijaria simples assim...
São seus olhos que veem gritos... Lhe pareciam tão nítidos!
Deve estar cega como ele... Ficou cansada como ele... E velha como ele...
E entorpecida... Vai dormir mais um pouco... Merecia um beijo esta manhã...
Um pássaro que mora com ela, em sua varanda, entrou no seu quarto e a acordou... Pensou que uma boa-nova ele traria... Mas era melancolia...
E em pares de décadas, o desencontro evolui à velocidade da luz...
No primeiro, um dia... No segundo, um mês... No terceiro, se vivos - um ano, talvez?
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Um conto de desencontro, um romance de ficção sem ocasião...
Ela