Crónicas : 

A CARAVANA

 
CARAVANA


O inusitado acontece numa manhã do tempo de S. João. Manhã fresca, do cheiro das orvalhadas que humedecem a natureza que dorme e dão sabor a esta Quadra, mas em que o Sol se anuncia com promessas de vir a aquecer a tarde.
De repente, a um providencial impulso de correr o estore do escritório, o espectáculo depara-se-nos com todo o maravilhoso de que fatalmente se reveste, a encher-nos os olhos atiçados pela aura da criança que teima em viver em nós.
Uma caravana de seis carroças de ciganos rematada por um cigano a cavalo, pesado nos anos a julgar pela curvatura da vertebral coluna, era cena que tinha lugar já só no livro das minhas recordações. É que nada faltava dos ingredientes que caracterizavam estes carros, tal como nos habituamos a vê-los há muitos anos. Aquele amontoado de bugigangas que parece virem já de geração em geração e o magote de canalha que por ali se encarrapita como pode.
Ao lado de cada carro, no caminhar ligeiro e nervoso de quem tem um papel a desempenhar, lá vai o eterno amigo do homem, por isso também do cigano, o cão.
Toda esta cena decorre numa via rápida de acesso à cidade, de tráfego intenso, mas agora afectado pela marcha langorosa da caravana, que nada nem ninguém teriam condições de acelerar. De facto, ao aproximarem-se, os automóveis abrandam num impulso que parece ditado por estranhos sentimentos de contenção inscritos no sangue do cidadão comum e com a marca já de uma certa ancestralidade.
Os automóveis como que se encolhem cerimoniosamente, resultando a cena num certo formigueiro auto, que desliza paulatino ao longo da via.
O porte dos membros da caravana é solene. Não tem que baixar a cabeça a ninguém, que as suas leis são as de um ancestral bom senso comunitário, de raízes fundas e que não têm que ser escritas. E de excesso de velocidade nunca ninguém os poderá acusar.
A atitude do homem a cavalo que segue na retaguarda é na aparência a do chefe do clã. Sem perda de altivez no porte, sereno, o seu olhar é atento e aponta determinado em todas as direcções, como quem controla e tem autoridade para agir. Há sim uma pretensa superioridade nos lances daquele olhar. Naquela cabeça já só há certezas.
Apetece-nos ler, naquele olhar que quase fulmina, a denúncia de uma civilização que está pelas costuras – a civilização da pressa, do consumo sem freios, da opulência, do comodismo despudorado, da perda do vínculo com a mãe natureza.
Apetece-nos também adivinhar sabedoria naquele olhar perscrutador e (talvez) convencermo-nos de que é mais nela – nessa sabedoria – do que noutros humanos atributos, que terão que assentar os pilares da civilização que vem ai e de que os nossos tempos parecem temerosos.
Ele – aquele chefe de clã feito cavaleiro – está tranquilo.
Não teme essa civilização que vem aí. Aliás, ele nem ouviu ainda falar dela, mas… pressente-a.

Antonius


 
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luciusantonius
 
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