A Era do Equivoco
Se para isso me sobejasse a força do mando, eu chamava a este tempo, além de outros nomes, a Era do Equívoco.
Salvo uma ou outra pedra, tudo está baralhado neste puzzle sem medidas que é a Sociedade deste nosso tempo – uma franja, vasta franja dessa sociedade e de que eu não estou arredado.
Nesta dita franja, a felicidade tem a marca única da Comodidade. Daí que tornarem-se falsos sinónimos foi um mero e fácil passo.
Enquanto que a primeira tem em si latente a Comodidade – ao homem feliz (talvez exista) a questão nem se põe – esta, por seu turno, de modo algum tem que guardar no seu bojo a Felicidade.
Apesar de ousado dizê-lo – e longe dos nossos propósitos a apologia à pobreza – às vezes acreditamos que o homem feliz pode morar no vagabundo, no que não tem eira nem beira, no tal que não tem aonde reclinar a cabeça.
Por seu lado, o homem instalado, aquele que sistematicamente calça as pantufas e nunca arranja tempo para o que quer que seja que saia da órbita dos seus pessoalíssimos interesses, apesar do possível semblante vitorioso, apetece-me perguntar se ele dorme o sono tranquilo e os pesadelos o não importunam.
O homem do Sec. XX fez da Comodidade a meta final: é a casa a transbordar electrónica, é toda a casta de espectáculos a entrar-lhe, às vezes com despudor, porta dentro, é toda a espécie de sofisticados aparelhos qualquer dia capazes de lhe poupar a maçada de ter que apertar os cordões dos sapatos, com a sobrecarga que o gesto implica para os músculos da bacia, dos braços e outros que a flexão naturalmente afecta. É o automóvel a levá-lo num abrir e fechar de olhos a todos os recantos da cidade ou do campo, só ainda o não levando à cama – hipótese que não temos condições de negar de forma rotunda para um futuro que se aproxima. Daí a lógica dos conceitos de evolução que defendem que o homem do futuro possa vir a dispensar esses apêndices a que ainda chamamos pernas, que talvez estejam já a ser estorvo para alguns.
Ao que consta, procriar começa a constituir para uns tantos coisa fora de moda. O banco de esperma é afinal uma boa e prática solução. Obviamente que ressalvamos aqui os respeitáveis casos de infertilidade pela via natural. Dir-se-á, invertendo o verso de Roberto Carlos, que amar já nem é preciso (…)
O homem do meu tempo decidiu-se a procurar a felicidade na comodidade, mas duvidamos que a encontre aí. No que nos diz pessoalmente respeito, embarcados que estamos na mesma carruagem, honestamente não temos na manga a solução. Limitamo-nos a pensar e a dar ouvidos à voz de uma certa intuição que com força nos diz que não é por aí.
A esperança estará talvez em que homem virá que constatará o enorme equívoco e se incumbirá de recuperar velhos caminhos perdidos.
P.S. Este escrito foi arrancado ao número daqueles que dormiam na gaveta há cerca de quinze anos, daí uma relativa desactualidade. Esta porém acho que a resolvo sublinhando o último capitulo, com o qual – se o escrito fosse deste tempo – eu estaria a referir-me a um tempo de mudança profunda, de contornos imprevisíveis, que me parece estar a acontecer.
Antonius