[i]“Não é por haver quem sofra que o mundo deixa de girar. E os patifes de serem patifes.
Talvez as coisas não aconteçam por acaso.
Foi o que pensei muitas vezes. Somos muito egoístas nos nossos dramas pessoais.”
Philippe Claudel, “Almas Cinzentas”- romance
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Era aquele o seu ponto de encontro de todos os dias.
Bem cedinho, qual funcionário diligente e rigoroso no cumprimento do seu horário de trabalho, chegava muito antes das oito. Pousava, junto ao pé do semáforo, aquilo que restava de um blusão de ganga que obstinadamente teimava, ainda, em mostrar o azul no meio de tanto surro e, sob ele aconchegado, um roto saco de plástico onde guardava (vá-se lá saber o quê...) alguns andrajos de sua parca existência. E esperava que o vermelho caísse, cedendo-lhe a vez o verde...
Serpenteando por entre os carros parados, aquele esqueleto cadavérico começava, então, a sua marcha mirabolante, avenida acima, avenida abaixo, mão estendida à espera que alguns cobres caíssem. Mão ancilosada, sobressaindo a custo daquele braço tão maltratado pelas múltiplas picadas onde injectava o ácido que teimava emprestar-lhe a vida.
E mal o verde do semáforo substituía o rubro (o verde cor da esperança mas sem esperança para aquele cadáver ambulante), tão logo ele corria, de pernas trémulas e fontes latejantes, para o seu ponto de encontro, arfando, a custo, encostado ao semáforo, aguardando mais uns minutos que a cor rubra desse luz e cor à sua triste vida sem sentido. E sempre, sempre aquele fadário... Novo serpentear, trémulo e hesitante, deixando balbuciar uma inaudível frase, que até já os seus lábios se despregavam a custo, para fazer ouvir, num esgar de dor, o agradecimento que a alma indiferente à vida arrancava ao corpo.
«Obrigado meu senhor, melhor sorte para si!»
Custava ouvir isto da boca dum desgraçado a quem eu adivinhava que jamais sorrira a sorte. E ali me pregava eu, bem perto, grudado ao chão, minutos infindáveis, máquina fotográfica ao pescoço, numa hesitação constante se batia ou não batia a chapa. Mas aquela miséria indescritível impedia-me de o fazer. Tantos lhe fechavam o vidro da janela do carro não fossem as chagas daquele corpo andrajoso e cheio de SIDA, pegarem-se-lhe...
Era nessa altura, na profundidade daquele olhar ancorado num cais sem abrigo e quase já sem alento de vida, que eu lhe lia poemas de sofrimento e dor, escritos nas rugas, cavadas fundo, num rosto que não teria mais que trinta anos mas tão envelhecido precocemente.
Um dia deixei de o ver...
«Ter-se-ia atrasado?!» – pensei.
…e outro, e mais outro, e outro dia ainda... uma pancada surda abanou-me por dentro e apertou-me a alma.
«Morrera!» – cogitei. Um pensamento que me perseguiu dias seguidos por quase três infindáveis meses...
E por ali continuava eu a passar, diariamente, sem necessidade expressa de o fazer, quando tinha caminhos mais curtos que me levavam ao meu destino. Mas era inevitável que o fizesse para saber se aquele cadáver ambulante ainda não tinha morrido. Eu sabia, no íntimo eu sabia, que aquele desgraçado não tinha morrido. Um dia, ei-lo de volta àquele ponto de encontro. Não estava apenas mais esquelético. Mais do que esquelético, uma cor que incomodava esbatia o seu rosto entre o amarelo e o verde. A hepatite, em grau avançado, minava em todos os quadrantes a sua vida. A hepatite, pela certa a SIDA!
Já não corria por entre as filas de carros, avenida acima, quando o vermelho acendia, que a recusa das suas pernas era quem lhe comandava agora a vida. A torpe vida... Ali mesmo, junto ao semáforo vermelho se emparedava, dobrado em dois, entre as duas filas de carros, de braço estendido e mão dobrada em concha. Um dia atrasou-se... e outro, e mais outro, e outro ainda… deixou de vir para sempre!...
do Autor in "entre nós, CUMPLICIDADES" (a editar)
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