Quando eu era menina bem pequena, em nossa casa, certos dias da semana se fazia um bolo, assado na panela com um testo de borralho em cima. Era um bolo econômico, como tudo, antigamente. Pesado, grosso, pastoso. (Por sinal que muito ruim.) Eu era menina em crescimento. Gulosa, abria os olhos para aquele bolo que me parecia tão bom e tão gostoso. A gente mandona lá de casa cortava aquele bolo
com importância. Com atenção. Seriamente. Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo. Era só olhos e boca e desejo daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha governava. Regrava. Me dava uma fatia, tão fina, tão delgada... E fatias iguais às outras manas. E que ninguém pedisse mais ! E o bolo inteiro,
quase intangível, se guardava bem guardado, com cuidado,
num armário, alto, fechado, impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito. Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos. Destinava-se às visitas da noite, certas ou imprevistas. Detestadas da meninada. Criança, no meu tempo de criança, não valia mesmo nada.
A gente grande da casa usava e abusava de pretensos direitos de educação. Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão. Palmatória e chineladas não faltavam.
Quando não, sentada no canto de castigo fazendo trancinhas, amarrando abrolhos. "Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça, era assim: severa, ralhadeira. Não poupava as crianças.
Mas, as visitas... - Valha-me Deus !... As visitas...
Como eram queridas, recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas ! Era gente superenjoada.
Solene, empertigada. De velhas conversas que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim. D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili. D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha. Puxava de uma perna e fazia crochê. E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves, Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego, Padre Pio. D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem. Era amiga do peito de minha bisavó. Aparecia em nossa casa quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas e a corneta do quartel, tocado silêncio. E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa, como era de bom-tom, se revezava fazendo sala. Rendidos de sono, davam o fora. No fim, só ficava mesmo, firme, minha bisavó. D. Joaquina era uma velha grossa, rombuda, aparatosa. Esquisita. Demorona.
Cega de um olho. Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado. Grossas contas de ouro
no pescoço. Anéis pelos dedos. Bichas nas orelhas. Pitava na palha. Cheirava rapé. E era de Paracatu. O sobrinho que a acompanhava, enquanto a tia conversava contando "causos" infindáveis, dormia estirado no banco da varanda. Eu fazia força de ficar acordada esperando a descida certa do bolo
encerrado no armário alto. E quando este aparecia, vencida pelo sono já dormia. E sonhava com o imenso armário cheio de grandes bolos ao meu alcance.
De manhã cedo quando acordava, estremunhada, com a boca amarga, - ai de mim - via com tristeza, sobre a mesa: xícaras sujas de café, pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo, e um cheiro enjoado de rapé.
Cora Coralina
(✩ 20/08/1889 — † 10/04/1985)
Autores Clássicos no Luso-Poemas
(pseudônimo de Ana Lins do Guimarães Peixoto Bretas)