Crónicas : 

AQUELE AUSTIN

 
AQUELE AUSTIN


De súbito, ouve-se o roncar de um motor de automóvel, acabado de entrar na recta da Pedreira, de escape aberto como qualquer dessa época.
Além de ser para nós já inconfundível aquele “trabalhar” de motor, a hipótese de ser outro carro (estávamos na década de 40), era remota ali na aldeia.
Claro que era o pai, no seu Austin dado à luz nas Fabricas de Bristol no ano de 1933.
Todos respiramos de alívio, que o pai já tardava e a mãe estava ansiosa. Uma ansiedade que nos envolvia a todos na mesma prece e agora que ele chegava, na mesma acção de graças. É que a noite ia já avançada e tudo podia acontecer.
Por estas e por outras, guardo desse remoto Austin uma cara recordação e as suas linhas angulosas, másculo como todo o carro do seu tempo, retenho-as no pormenor. Acho que ainda lhe sinto o cheiro dos estofos que na altura já não podiam orgulharem-se de novos.
Nesse tempo, era peça única e invejada lá na aldeia e, apesar de instrumento de trabalho, nem por isso deixava de ser objecto de orgulho e mesmo de vaidade para nós, os de casa.
Recordo esse longínquo Austin com veneração. Era como se fosse criatura da família .
Ao recordar o pai, pressinto-lhe o carro nas imediações e, quando recordo o carro, lá vai o pai, assumido da responsabilidade que para ele era conduzir um automóvel – ele que aprendeu a guiar em 1915 no carro dos patrões – um Panhard 1911.
Estou grato a esse Austin pelas satisfações que me deu, pelas vezes que me transportou lá abaixo à vila, que ao tempo significava em boa verdade ir de visita à Civilização.
Há tempos num rally de carros antigos que fazia paragem junto ao Paço dos Duques de Bragança. Quando se aproximavam deparei com surpresa com um carro exactamente igual aquele Austin. Estacionando ali próximo, abeirei-me dele a passo largo na ânsia de lhe ver a matricula. Para minha decepção não era o MN-23-74. De qualquer modo deu para o comer com os olhos e com as pontas dos dedos. Senti então que o mundo dos afectos pode passar por coisas com uma velha, férrea, fria e frívola maquina automóvel .

 
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luciusantonius
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 01/04/2009 10:15  Atualizado: 01/04/2009 10:17
 Re: AQUELE AUSTIN
Sou um pouco mais novo. Não muito mais. Aprendi a conduzir numa Ford (dita de calças arregaçadas) e autonomizei-me num Austin A35...., numa aldeia no interior transmontano.Bem!Dá para perceber o quanto este texto calou fundo. Mas aplaudo sobretudo a escrita escorreita, a memória que a boa literatura vivifica. Abraço

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 01/04/2009 21:30  Atualizado: 01/04/2009 21:30
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 Re: AQUELE AUSTIN/Henrique Pedro
Tinha eu comentado já cá em casa que este texto não teria o dom de acordar o saudosismo da gente jovem - que é o grosso da coluna deste site - muito me sensibilizou o seu elogioso comentário, prova provada de que a saudade continua a ser um atributo da nossa raça.
O meu abraço

Antonius