Acordei cedo.
Demasiado cedo. Eram cinco da manhã. Não porque tivesse algo em especial para fazer. Não por ter tido algum pesadelo. Apenas acordei. Nunca tenho pesadelos. Talvez não seja normal. Todos dizem que já tiveram pesadelos. Eu não. Não sei porquê. Há em tudo algo que escapa às normas. A velha e austera norma.
Depois este absurdo. Na escrita. Ninguém escreve a esta hora. E se o faço é sem nenhum propósito em especial. Talvez tenha finalmente reparado, que nasci para estar só. Apenas isso. Não sou dos outros. Não lhes encontro afinidades. E quando, na ingenuidade, julgo ter aparecido alguém, logo verifico que esse alguém também não é. Depois desoriento-me. Assusto-me. Pergunto-me. Porquê. Apenas isso. Na verdade. Vou quase ao vertiginoso primórdio da questão. Mas logo recuo. Terei os olhos feios, o cabelo despenteado, o conjunto desafinado? Não terei capacidade de diálogo, cultura suficiente, não me esforço? A inteligencia é pouca? É desagradável estar comigo? Eu não sei. Sempre vivi comigo. A familia suporta-me, os amigos gostam. Os colegas de profissão acham-me o supra-sumo de quase tudo. Os colegas de faculdade, mal me conhecem. Os professores ainda menos. Que significado terá? Estarei no curso errado? Estarei no espaço errado, à hora errada?
Como queria a coragem de largar tudo. De um dia para o outro. Sem despedidas. Sem dizer nada a ninguém. Adormecer novamente, e acordar no outro lado da noite. No lado errado da noite. Mas acordar. Ver o que está à vista.
Mas teimo. Na persistência e na impotência do abandono. Chego a duvidar e a temer as minhas capacidades intelectuais. Rondo a mais pura estupidez. E a auto-estima dispara rumo ao menos infinito. E não foi por isso que os outros se afastaram. Nunca estiveram próximos. Nunca quiseram conhecer-me. Afasto-me também. Num silêncio ensurdecedor. Numa dor. Grave. Que me desorienta e baralha. Sei que não vou a lado nenhum. Que vou ficando por aqui por ali.
Sei que chega o dia em que volto a ver o olhar, que me roubou, a razão. E sem razão, talvez num cumprimento formal, politicamente correcto, eu diga um boa tarde ou noite.
Talvez num trocar de voltas, engane o que parece inevitável. E naquele dia, eu chegue tarde. E os olhares nem se cruzem.
O que perco ou ganho, nada. Como sempre. Não fico na dúvida. Não há dúvida no outro sentir. Não há espaço. Há outros. Eu não chegarei nunca. Multiplico-me em palavras. Quase numa insuportável esquizófrenia. Mas a merda da lucidez, ofusca-me de realidade. Consciente da cansada perturbação que não chega a patológica. Isto passa com o tempo. Logo vem a época balnear. Meia dúzia de mergulhos e tudo passa. E a puta da existência que me cansa, nunca chega. Não me chega.
Porquê, não eu? Olho a fotografia. Tanta beleza. Leio as palavras, leves. Oiço os eternos violinos. Tenho o disco rigido repleto de ti. Sim de ti. Admiras-te? Porquê? Não o adivinhaste já? Não é desse adivinhar que te chega o frio? Não é por isso que quase me ignoras? Não provávelmente, não.
Apenas não sou quem queres. Não me conheces. Dizes. Mas, num passado distante, durante algum tempo o teu olhar pousou no meu. De entre tantos que havia no mesmo espaço, escolheste o meu. Mas não te lembras. Foi coincidência. Não esqueci. Tentei. Fui embora. Esperei o Verão que tudo leva. Mas tu não foste. Mas um dia, juro que se não fores, vou eu. Um dia juro, que vou para além de mim.