Homenagens : 

Ao Homem e Sem-Abrigo...

 
Olho a rua, conheço-a já de cor, dos passeios esse transeunte desassossego se desprende, é já dia e as ruas em breve atulhar-se-ão de gente, abro as portas deste meu reino encantado, fico um pouco, outro tanto, fico sempre mais do que o tempo que devia a matutar na vida triste que tenho… ao meu lado dorme ainda sossegado o meu incansável companheiro.
Vou até ao chafariz da praça lavar a cara, esta água já teve melhores dias, agora está suja e encardida, já não há patos como antes, não há nada já. Nos primeiros dias, quando aqui vinha, havia sempre alguém a dar de comer aos patos e ainda conseguia sobrar alguma coisa para mim depois na saca no cimo do lixo. Agora é o que se não vê, gente a passear aqui! Parece que esta praça se tornou mais um local de passagem do que um local de paragem… é pena, já vejo poucos rostos logo pela manhã, só aqueles dos condutores embrutecidos que buzinam quando tento atravessar a estrada para lavar a meu rosto nesta água encardida.
Vou de novo até à minha casa, um canto da rua, um pedaço de papelão, um edredão sujo que no início deste ano alguém atirou ao lixo e eu aproveitei. Sou homem de muitas posses, uma mochila, dois pares de roupa, um cão, três balões, um sorriso no rosto, muita vida ainda… o mais importante é acordar sempre com a paz no coração. Nunca se sabe quando será a nossa próxima refeição, depende da amabilidade dos corações que por nós passem mas o que interessa é que neste meu reino há sonos bem dormidos, há felicidade…
Conheço as ruas desta cidade de traz para a frente e da frente para traz, sei de cor as caras das pessoas que por mim passam e quem por mim passa mais do que uma vez não esquece a minha. Sei do rio como sei de mim, no Verão é lá que tomo os meus banhos, a água está poluída dizem alguns, que interessa! A água do chafariz está mais poluída e lavo a cara nela todos os dias.
Às vezes fico triste, muito triste, assim um sentimento qualquer que invade quem por mim passe, um estado qualquer de solidão que desconhecia em mim, tenho vontade de passear pelo jardim e sentar-me na erva a observar o mundo à minha volta e penso sempre, como se ainda fosse possível pensar, na vida que poderia ter tido se não tivesse tido a infelicidade de perder tudo o que amava…
Quando discutem comigo dizem-me coisas muito feias, “Vai trabalhar!”, “Estás assim porque queres, és esperto!”, eu ouço e calo, em parte têm razão mas eles não sabem como é difícil começar do zero, quando não se tem nada quer-se tudo de uma rajada e fica-se pelo querer… eles não sabem como é difícil curvar os olhos e agradecer as moedas que me dão, não sabem o que custa levantar-me todos os dias da minha caixa de papelão e lavar a cara na água encardida e não sabem, não sabem nada, pensam que sabem tudo, não sabem o que custa perder o mundo com a perda do corpo de quem amamos.
Não ficar mais assim mas agarro-me a quê? Assim ao menos, de uma ou de outra forma, tenho a minha estabilidade e vou vivendo, aposto em mim? Quando? Haverá alguém interessado em apostar num sem-abrigo? Se houver digam-me onde está esse anjo quero encomendar já o meu milagre!


Dedicado ao Homem e Sem-Abrigo Nuno Rodrigo, tive o prazer de me cruzar com ele ontem ao cair da tarde e de ouvir atentamente a sua história de vida, estava ele deitado na relva a chorar olhando uma camélia quando resolvi deitar-me também e olhar para a camélia dele...
Ele próprio é um anjo que ainda não aprendeu a fazer milagres, não acham?


. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1399
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.