Robótica.
Hospital das Clínicas – São Paulo – Janeiro de 2005
O talho foi preciso, duplamente, na ambiguidade dos sentidos que a palavra converge nas suas conotações verbal e subjetiva.
O bisturi desceu novamente com sua precisão de tato, de toque e de lugar. As carnes trespassadas ao meio, os tecidos em torno dela dilacerados, quentes, imaculados, separam-se com suas partes violadas. Onde surgiram os dizeres coloquiais de que o coração fica ao lado esquerdo do peito, aos leigos em medicina humana devem-se a culpa, mas de quê culpá-los se eles próprios não as têm como suas. Entretanto não vem ao caso agora, sentimentos,culpados não são quem culpas se julgam, mas quem as verdadeiramente sente.
Outro corte. Este mais profundo e não menos delicado que os outros golpes, reduzidos assim à forma delicada de talhos, pelas mãos seguras e ríspidas do Cirurgião, chamá-lo-emos por esse nome, Cirurgião, em respeito ao bem que pratica, não só nesse instante, mas por todo o correr de sua profissional existência.
O coração está lá, esbaforido, tenro, mas mudo,mas surdo, mas oco, no centro da caixa torácica a quem se denomina também peito, bem no centro, nem ao lado direito, menos muito ao lado esquerdo. Não pulsa por si só, melhor entender-se e corrigir, porquanto não descreveríamos este enfermo como paciente e este doutor como cirurgião, mas tais, cadáver e coveiro.
A máquina o impulsiona para frente e para trás, bombeando o sangue até aos pulmões que volta oxigenado ao coração para então ser distribuído através da válvula aórtica às vértebras, aos músculos ,aos tendões ,ao cérebro e ao restantante dos órgãos do corpo. Enquanto bombeia o sangue, grita em apitos miúdos e rápidos, seguidos de uns riscos que descem e sobem traduzidos a oscilamentos tenebrosos, luminosos e curtos no visor que é o olho do computador.
Visto que o mundo é feito por números, porque em tudo que no mundo há, seja matéria real ou lógica, o número se infiltra, decorrem-se as horas, posto que o embalo do tempo também é um número ou por ele é demarcado, representado por gráficos digitais ou analógicos, atualmente devido á reverberação hiperbólica da tecnologia, utilizados e mais vezes nítidos pelo primeiro.
Os dígitos no relógio de parede , no marcador dos pulsos, nas telas dos computadores marcam 20 horas, com variações distintas entre ambos de alguns segundos cronológicos, mas o tempo é igual em todas as circunstâncias, pode não sê-lo medido por igual, mas em real o é, mesmo que também por igual não o seja sentido.
Em tese que o número está interligado a tudo que é próprio da terra, haja visto que este mesmo mundo é 1 e daí, sucedem-se em leques inúmeras outras tantas comparações que um leitor mais intrigado e mais afoito na sua curiosidade poderá mesmo por si descobrir e criar, consta à volta dessa mesa de cirurgia um total de quatro pessoas que forma com o cirurgião chefe sua equipe. Em círculo, elas estão afoitas. O paciente mórbido nada vê, se o vê não exprime razão alguma por demonstrar ou deixar perceber-se que é dono daquela visagem, se não fúnebre, mas caótica de vida.
Há de subentender-se que uma pessoa de vistas serradas está na impossibilidade de ver, mais explicitamente de enxergar, ora pois, há uma sutil diferença entre esses dois verbos. Entretanto, num sub consciente que nem a natureza científica explica, porque não consegue desnudar, algumas teorias religiosas insiste nos casos de extremo entre morte e vida que a alma humana se desprende do corpo, se depara com sua cápsula carnal estendida a espera de alguma decisão divina. Se nesta situação está, ou já o esteve, nunca saberemos, porquanto não entramos em sua alma.
Mas o coração, este sim, o vemos, sentimo-lo, se o tocarmos. Neste momento a dúvida se perpassa entre alguns dos enfermeiros, se dispersará entre eles, vindo a se tornar inquietação noutros momentos para os demais , até para o cirurgião e para nós mesmos.
Este coração já cansado, esbaforido de bater, só pulsa porque é obrigado a obedecer a máquina, se não o fosse já há muito teria parado, será vítima de um transplante. Julga-se neste instante, mas poderá sido ter em outros a dúvida dos enfermeiros,Que sentimentos trará ao corpo essa novo órgão que se infiltra nele. Amará ele pessoas que não ama atualmente, reconhecerá seus filhos, se os tiverem, ou possivelmente sua esposa, sua enamorada, seu amor... É já sabido que os cientistas vivem de fatos, de provas, os médicos não são menos, mas que correlação com os sentimentos humanos eles atribuem-se ,se agem mais com a praticidade dos fatos que com os sentimentos relacionados a eles. Entrementes, julga-se, que antes de médicos, enfermeiros e cientistas, são seres humanos, somos dotados da inquietação desde que nos fizeram ou, fizemo-nos racionais.
O transplantado, o velho, o irremediado deixa sua caixa torácica morto, num reino que vivos não penetram, leva consigo tudo o que viu,o que sentiu , o que falou, ouviu e naturalmente pulsou. Está já perdido em suas lembranças e elas com ele. O novo órgão toma lugar naquele corpo estranho, com reações desconhecidas trazendo consigo uma gama de bagagem que terá de habituar-se a viver sem, outras que lhe será cabido adequar-se para que se cheguem a consenso com seus novos compatriotas de corpo e também de alma.
Ainda servirá para algumas análises clínicas antes de ser descartado, contudo sua condenação já há muito é sabido, por isso aqui enterre-mo-lo, deixemos-o de lado , como a um ente querido, tentaremos esquecê-lo, razão óbvia, que a vida é uma constante progressão de fatos e relatos que nos impulsiona para o próximo minuto.
Para este paciente a vida submergida retorna numa caixa acinzentada, trazida de uma câmara fria por dois enfermeiros. O recipiente é desproporcional em tamanho para o órgão que suporta, tem um aspecto frio, gélido. De suas bordas e corpo transcende um vapor branco, enfumaçado, como se ela se desfizesse em suores para suportar a vida que nela carrega, que nela se instala, porquanto esse mesmo coração sabe que não é nessa caixa que deve criar raízes, mas em outra, mais hóspita e aconchegadamente mais calorosa.
O numerário das horas se avança pela noite, os minutos são imensuráveis e incompreendidos porque cada segundo é tornado numa eternidade. Passa-me o bisturi, pede o cirurgião, Verifique os batimentos cardíacos, ordena a outro instante, Meça a temperatura do corpo, Reveja a pressão arterial... Uma relação de pormenores clínicos indispensáveis seguidos minunciosamente à risca.
As conseqüências de um transplante chega sobre alguns pontos em seu resultado improvável à responsabilidade de um milagre. A vida por si só é já considerada um. Retê-la no seu estado, encarcerá-la em seu apaziguamento ou deixá-la intacta é um feito extraordinário para o homem, que longe da plenitude de criar, sente-se ao mínimo no dever de mantê-la. A ilusão é imprópria, ou mesmo um caso de afinada demagogia e egoísmo profissional. A vida e o tanto quanto o que respire ou existe no mundo fatalmente não permanecerá para o sempre, mesmo este paciente parcialmente a salvo, terá seu dia de morrer, transcendendo essa condição, sem excetuar o Cirurgião, sua equipe e o próprio de cada ser existente em face da terra.
Mas vale, por hora, o retardamento da morte, o gozo da vida preservada, o prazer do reconhecimento pessoal, vencemos aquela horrenda face que nunca nos é mostrada.
O corpo humano equipara-se a uma máquina, com fios enredados, cabos, engrenagens, lubrificantes e tal e tais. Troquemos pois, a peça em disfunção, ajuste-mo-la, emendamos fios, peças, apertamos aqui, ali, pronto, mais alguns testes, volta a funcionar.
Não é, tomado desse ângulo técnico, um exagero de expressão essa tão fria equiparação. Aqui está, doutor, o coração, disse o enfermeiro da esquerda, mostrando a caixa, quando poderia exprimir, Aqui está, mecânico, a peça a ser trocada. Não o faz desta maneira por não lho ser cabível para o momento, nem para o cargos.
O Cirurgião soergue cuidadosamente aquela matéria viva que lhe enche as mãos e o ego, de maneira a satisfazê-los, ambos, as mãos e o peito de forma arguta, num poder unitário de regozijo, tornando-o deus num domínio sobre a vida com poderes promíscuos e restritos, mas um deus.
Retraído em si, o peito, na sua aflição desmedida recebe aquele objeto sem entender a desolação que é estar sem um pedaço próprio, que nasceu com ele, que pertence àquele corpo desde quando de sua formação ainda no seio de um útero tenro e protetor.
Em tanto quanto é difícil desfazer-se de um hábito há muito adquirido, é embaraçoso entender a ausência de um pedaço de si, mesmo substituído por outro de igual valor. Mas o destino do homem é acostumar-se às conseqüências. Habituamo-nos a tudo, sendo nas violências ou na paz, em sossego e desordem. Ao corpo não torna-se diferente, se nosso cérebro o instrui, o designa os atos.
Por hora,que esse peito grite, esperneie, chore, não há outra forma, o que está feito, está feito. O que lhe resta é conceder-se a indignação,que rebelar-se e entregar-se ao martírio, só dor lhe causará. Visto que o instinto humano, como já foi descrito, é acostumar-se às situações, muito breve o peito estará pulsando um coração que arde na ânsia desesperada pela vida.
O tempo rege a existência, implode os minutos, devassa os dias, avança com as semanas, mas se ele é o senhor da vida, é também a cura para os males que só nele é plausível esperar. Está parcialmente curado, o paciente, de coração novo, alguns dias e voltará para casa, descobrirá que a vida ganha um novo sentido quando encontramo-nos à vistas com a morte, o simples despertar pela manhã terá um sabor mais profundo, uma inesperada caminhada pela rua e saberá compreender a empáfia a que é comedida diariamente os outros seres humanos, ele, não, o paciente o foi, antes de adoecer-se, intransigente, egoísta, cruel, tal qual as outras pessoas comuns que vem e vão sem aperceber-se de si, sem medir os cálculos de suas intransigências. A dor da morte é uma boa razão para a cura de vícios comuns que acudimos todos os dias em nossos quartos. O paciente verá o mundo de outra forma, saberá reconhecer o valor que lhe é a vida e outras tantas ações simples do dia-a-dia.
Seu coração novo adaptou-se ao corpo com uma sutileza submissa, amou as pessoas que seu cérebro ordenara que o outro coração amasse, gostou dos hábitos que seu dono já adquirira, mas sobretudo não odiou os tantos outros pormenores que lhe foram um vício ou um empecilho antes do processo de transplante.
No entanto, para toda existência existe um fardo, que pesado ou leve, será carregado ao longo da vida e posteriormente cobrado conforme seus pesos e suas medidas. Em notas do que se tem dito ou escrito, a ciência médica não encontrou ainda um meio de reter, ou sobreviver-se à morte. As células que se multiplicam aos milhares quando jovens, desistem desse intento com o passar dos anos se voltando no sentido oposto, se desintegrando, morrendo também aos milhares, até o corpo inteiro sentir o efeito desta desintegração e desistir da vida. A morte é proeminente, principalmente dessas atitudes naturais do organismo, tornado, também evidente, que não se limita apenas a esses fatos a razão do desfalecimento de um ser humano, existem às centenas outras causas e motivos.
O paciente morreu. Decerto que alguns anos mais tarde. Ainda gozou de tempo para cuidar dos filhos, amar os netos e esposa. Teve tempo para observar inúmeros pôr de sol, estiagens de chuvas, de invernos e outonos, sofrer outras crises e doenças. Mas a não existência também é parte da vida. Uma não há sem a outra... , sendo a morte uma de suas conseqüências é natural que ela não se esqueça de nenhum de nós.
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Centro Integrado de Recuperação Humana- São Paulo – 600 anos depois.
De acordo com dados atualizados do Sistema Responsável pelo Desenvolvimento da Saúde Mundial, nos últimos 100 anos, 1 milhão e 200 mil fetos foram gerados com algum órgão interno mutilado ou foram portadores de certos tipos desconhecidos de anomalias. Desse número, um diferencial de 800 mil está grafado numa parte ainda mais grave da estatística. São natimortos, por não conseguirem desenvolver órgãos vitais como o coração ou os fígados e pulmãos.
O fado, a predestinação da evolução humana, ainda que não demonstrada abertamente é igualar-se a Deus, ou ser um, com iniciais minúsculas. As diversas tentativas para se chegar no que se transformou a medicina moderna, deixou em evidência esse intento. Os transplantes foram evoluindo, a ponto de sê-lo feito em quaisquer partes imagináveis do corpo humano.
A medicina atual só não tinha tato para esse problema. Os natimortos. Só não tinha tato, grifa-se bem. As últimas notícias davam conta da criação de órgãos vitais em laboratório. Corações, pulmões e fígados eletrônicos era testados em cobaias humanos já tidos como mortos.
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Os tecidos das carnes foram atingidos com uma rapidez invisível a olho nu. Um pequeno corte foi observado no centro do peito. O raio lazer atingira o tecido com a precisão desejada. As máquinas auxiliares, nos silêncios delas pareciam observar apenas, enquanto o médico cirurgião transpunha ao centro da caixa torácica uma infinidade de fios e pinos interligados aos órgãos humano.
Aqui está, doutor. Disse o enfermeiro. Ele trazia uma caixa metálica e brilhante, com selo e data de fabricação.
O cirurgião vislumbrou aquela maravilha eletrônica que iniciava a pulsar em suas mãos e se encheu de prazer e regozijo(...)