Falho o passo e tombo desamparada no meio da metrópole. Fito pés e pernas daqueles que passam e, fitando-me ou não, sequer ousam parar. Antes de mais, esboço uma inútil tentativa de me soerguer e voltar ao frenesim de acelerados andares. Não consigo. Vislumbro a minha perna partida, de onde brota um gélido sangue rubro espalhando-se em meu redor. Observo agora, com surpresa, os pés dos transeuntes mais ao longe – passam ao largo da mancha encarnada que vai cobrindo o passeio sujo. Alguns apressam-se a ultrapassar-me, com desdém; outros abrandam sem cessar e deliciam-se com os esgares de dor estampados nas minhas feições. Será que ninguém se vai deter para me acudir? Cerro os dentes e solto um gemido profundo – alguém acabou de me pisar! Como pode ser? Agora, mais do que o desprezo e o desdém, divertem-se com a minha frágil presença e ainda acalentam a minha dor. Sinto-me estranhamente só num mar de gentes e barulhos. Os tacões das senhoras zumbem-me aos ouvidos como compassos de relógios desacertados, transformando minha mente num caos prestes a estourar. Mais ao longe, os condutores fazem soar suas buzinas impacientes. Esses sim têm destino e apressam-se a lá chegar, inquietando-se com as demoras e com todos aqueles que demora lhes impõem. Isto faz-me pensar – afinal, aonde ia eu? Já nem sei, soprou-se-me da mente, tal a sua importância mesquinha. Neste momento só sinto dor. Dor e vazio. E solidão. Xiça!, afinal ainda sinto algumas coisas!
Penso nos que não se apercebem sequer que ali me encontro estatelada e só na calçada fria e suja. Ao contrário de mim, que já não lembro onde ia, talvez tenham problemas importantes que os impeçam de olhar em volta. Sim, deve ser isso. Têm expressões tão carregadas, suas faces! Oh, que infelizes. Tenho pena deles. Espero que em breve suas faces se transfigurem em algo melhor e mais ligeiro. E aqueles que apesar de me verem e se aperceberem da minha presença não me estendem a mão? Tremo por pensar que talvez já tenham caído sem que ninguém tenha parado para ajudar. E se também os pisaram, como me fizeram a mim? Ai, peno ainda mais por estes últimos, que já foram sugados pela falta de fé no mundo. Espera. Mas e se isso acontecer comigo? E se isto me fizer acreditar que o normal é seguir viagem perante uma pessoa a esvair-se em sangue no meio da rua? Não quero! Agora, mais do que dor, inunda-me a revolta. Não quero estar destinada a isto, não quero que um dia um pobre desafortunado a sangrar no passeio tenha pena de mim por desdenhá-lo a ele e à sua dor. Não! Não pode ser. Sinto a respiração ofegante, estou em pânico. Não quero que o mundo me desiluda assim.
Tento esquecer que as pessoas passam sem me ver. Como? Já sei! Olho para cima e foco-me no céu. Oh!, está tão azul, hoje. Subitamente, a calçada ganha uma luminosidade quente. Mas que céu perfeito. Não ouço já o tic-tac desconcertante de mil sapatos a trotar o chão; são já murmúrios de uma harmonia azul celeste, que de meus olhos parte para de mim se apoderar. O sangue que de tão espalhado nas minhas redondezas mal resta em mim não remete já para a dor de uma vida em fuga; é um mar de paixão que nas suas ondas me aquece e me dá sentido. Sorrio, por fim. Sabia que não me desiludirias.