Num guincho frenético de aço contra aço, deu os últimos estertores na travagem em frente da estação o comboio velho e cansado. Jorge pegou na mala do estribo e assomou á porta, descendo os degraus para a suja gare em betão agora enegrecido pelo tempo com a mescla de pastilhas elásticas esmagadas no cimento. Olhou em volta, o velho relógio de duas faces continuava parado como se o tempo ali tivesse congelado. Os azulejos da estação eram os mesmos com a tinta já puída pelo tempo tal como a representação, que glorificava tempos idos da grande industria têxtil desde a safra do algodão aos lençóis de lavores sem fim, de um povo ali glorificado mas condenado á paralisia como o relógio da fria gare. Ouviu-se o assobio do guarda freios em frente ao comboio com a bandeirola levantada dando sinal de marcha ao vagaroso monstro que num gemido se pôs em movimento arrastado em direcção á próxima estação, virou a gola ao vento agreste e ficou a olhar para ele até desaparecer na linha que o horizonte afunilava. Foi á pequena taberna da estação, olhando os velhos que lhe pareciam os mesmos de quando partiu, cartas penduradas nas mãos amarelecidas pelo tabaco, e um fino traço de tinto nos lábios dando-lhe um ar leporino. Dirigiu-se á taberneira, gorda do outro lado do balcão e pediu para fazer uma chamada para um táxi. Lentamente a mulher pôs o contador do telefone a zero e assentiu com a cabeça.
- Sabe um número de um táxi aqui da zona? – Perguntou.
- Tem aí um autocolante ao pé do telefone – resmungou a anafada mulher com cheiro a bacalhau frito e buço farfalhudo. Jorge discou o número e pediu um táxi para a voz de bagaço que o atendeu do outro lado da linha. Cinco minutos demoraria a chegar. Jorge desligou o telefone, pediu um café e uma água das pedras.
- Água só da torneira, mas o meu poço é empedrado – respondeu a mulher motivando sorrisos trocistas entre os velhos.
- Então deixe estar, dê-me só o café – respondeu Jorge.
Saiu mesmo a tempo do táxi que apitou do outro lado da linha na estrada paralela á via ferroviária.
Entrou no táxi, recostou-se no banco traseiro sob o olhar atento do motorista que o observava com o sobrolho carregado.
- É para o Fundo de Vila – Indicou o Jorge observando o táxi “Mercedes” cujo aspecto denunciava os anos a ruminar estrada esburacada, uma imagem da Senhora de Fátima sobre o tablier tão suja como o resto do carro.
- Não o conheço de algum lado? – Pergunta o Manuel taxista com ar de desconfiado.
- È capaz… – Responde Jorge, começando a reavivar a memória e reconhecendo a voz de bagaço do motorista. – Moro na “casa grande” de Fundo da Vila.
- Eu logo vi, você é o filho do Sr. Jorge Maria Braga, acho que o seu pai até lhe pôs a si o mesmo nome, não foi? Retrucou o motorista naquelas certezas absolutas que só o povo tem. Uma tristeza o que se passou com a sua família, o Sr. há quanto tempo já não vem cá? Já ‘pa aí há 10 anos, não?
- Quinze – respondeu o Jorge.
- Foi logo a seguir àquela morte esquisita do seu pai, bem me lembro. A sua mãe não lhe sobreviveu muito tempo também, coitada. Mas a sua irmã lá está, embora não fale com ninguém e ninguém a veja por trás do matagal que cobre a casa. Diz o povo que ela endoideceu, mas sentem que está viva porque o cão da casa está sempre gordinho. Esquisita aquela sua irmã, desde a sua partida nunca mais pôs o nariz cá fora, as pessoas nem sabem como ela se alimenta, a chaminé nunca mais fumegou, dizem que a casa está assombrada.
O Manuel taxista ia dissertando enquanto o carro ia lambendo a borda da estrada de paralelo granítico numa marcha lenta descobrindo aos olhos do Jorge a paisagem de que se tentara esquecer mas não conseguira. A voz do Manuel continuava a ressoar no carro quase no mesmo tom do motor esforçado dos anos.
- E a japoneira? Você sabe que aquela linda japoneira nunca mais deu flores desde que você saiu daqui? Áh, ainda me lembro em dias de procissão, as pétalas das flores da japoneira enfeitavam os tapetes de flores de toda a aldeia, o seu pai tinha muito orgulho nas festas da terra embora não fosse crente. Toda a gente estranha que a árvore continue viva mas não dá flores…Você não acha estranho Sr. Jorge?
Jorge mal o ouvia absorto nos seus pensamentos.
- Hem? Sim, sim claro Sr. Manuel, é Manuel a sua graça não é?
- Então lembra-se de mim, também? Pois claro, sou o Manel taxista…
O carro entrava agora na rua Fundo de Vila, uma rua sem saída que desembocava na entrada da “casa grande”. Ao chegar o Manuel descreveu um semi-arco virando o carro para a direcção de onde vinha.
- Cá estamos Sr. Jorge, são 200 escudos se não se importa.
Jorge saiu do carro, chegou-se á porta do Manuel estendendo-lhe as duas notas de 100 escudos enquanto este olhava o retrovisor mirando a casa, num esgar de terror…
- É feitiçaria, é feitiçaria, cruzes credo – arrancou no carro derrapando as rodas traseiras, assustado nem engrenava as velocidades, limitando-se a carregar no acelerador querendo afastar-se o mais rápido possível. Jorge ficou a olhar para ele estupefacto com as notas na mão…. Olhou para trás, viu os muros altos encimados por silvas enormes, por trás vislumbrava-se os telhados da casa, e ao lado do portão fronteiriço a japoneira, alta, imponente orgulhosa, toda, mas mesmo toda florida em pleno inverno.
A essa mesma hora os velhos da tasca da estação de comboio olhavam embasbacados para o relógio que tinha recomeçado a trabalhar depois de tantos anos parado...