A pergunta mais frequente pela malta do zero à esquerda é: e se o mundo acabasse amanhã, que farias nesta última noite?
Os mais mordazes e sem freios na língua diriam logo que passariam a noite em claro, nas putas, claro! Até doer os ossos, do carpo ao mendinho.
Outros mais filosoficamente naúticos diriam que aproveitavam as horas que restam olhando as estrelas esperando o sinal, e se possível uma caravela que o vá levar. Não é mal visto!
Eu, como fraco historiador, também já me passou essa ideia pelos manguitos e, a conclusão que tirei daí foi que, se o mundo acabasse amanhã, deitava-me a dormir, assim, recordava aquela velha história que um dia me aconteceu no verão de 97. Tinha eu idade suficiente para decidir em quem votar, recém-encartado, as minhas frontes ainda tapadas pelos meus ex-cabelos fashion, já sem vestígios de borbulhas no rosto, sem exames à porta, enfim, no auge da produtividade hormonal.
Conheci uma garota dos seus vinte e poucos anos na esplanada de Esposende, a propósito de ela me pedir fogo para atear no seu SG Ventil, ao que tive de interromper a leitura na revista da Visão e, num gesto cinematógrafo de câmara lenta, com intuito de olhà-la bem de cima abaixo, satisfaço-lhe o pedido.
Como se os meus dedos estalassem num abracadabra o fogo surgiu por entre os dedos e acendi-lhe o cigarro. Ela agradeceu ao mesmo tempo que me pedia desculpa pela intromissão.
- Que é isso menina, estamos todos na mesma jogada!
Ela sorriu, mas não entendeu a minha troca de palavras. Sorriu porque é bom sorrir e dispensa dizer obrigado. Quando ela se preparava para voltar o corpo e ir à sua lide, fiz o meu papel de vereanante e perguntei-lhe:
- Tu acreditas que algum dia o mundo possa acabar?
Ela ignorou a pergunta e, como de bom costumes, sorriu novamente.
Acrescentei: estou a ler aqui neste pedaço de papel que amanhã vai tudo pelos ares! E nós, nickles, chapéu, ficaremos em cinza como o pó neste cinzeiro!
A moça reflectiu, deu duas passas seguidas no seu cigarro, por momentos deixei de a ver, e quando lhe descobri os contornos, já ela estava sentada na minha mesa com o braço levantado a fazer sinal ao garçon para que a sua bebida seja antes posta ali.
Falou-me de Kant e Arquimedes num fôlego imparável.
Gostei de a ouvir, principalmente nas tónicas mudas que era quando os seus lábios pareciam que me vinham beijar.
Quando ela parou para molhar os seus lábios na Vodka fria, coloquei o meu raciocínio na ordem da conversa, escondendo o meu sotaque provinciano, dando mostras do meu diploma, que não tenho, sobre superstições que o mundo contém.
Que o mundo amanhã vai terminar, pois tudo o que começa tem um fim.
- Repara na destruição maciça da paisagem, olha aqui esta passagem que este filósofo grego adiantou há dois mil e quinhentos anos atrás.
Silêncio. Sem gestos nem palavras. Mais duas vodkas frias para arrefecer a conversa que se esquentava.
Falar do fim do mundo provoca uma sede danada.
As horas passaram-se lentas, como a tinta que vai secando, e, entre jogos de palavras e filosofias alcoolicamente eléctricas, concordámos que o fim do mundo seria amanhã.
Só não sabiamos a que horas. Depois surgiu um convite, daqueles de se não negar: acabar a noite no apartamento dela que tem vista para o quebra-mar e esperar pelo fim do mundo, abraçados.
Eu que muitos filmes vi na minha vida, nunca pensara que pudesse assistir a um fim do mundo, no quarto de alguém, abraçados, e quem sabe, despidos versus entrelaçados.
Recordo que aquele convite foi como se me abrisse um novo mundo. Mesmo que viesse o fim do mundo, os anos que vivi já valiam a pena, só pela forma como ia festejar o terminus do planeta. Melhor do que ver baleias num oceanário, pensei na altura.
Em casa dela esvaziámos uma outra garrafa cheia de vodka e, com os fundinhos de outras garrafas deu para alimentar a sede e a vontade de despir nossas roupas, contar uma história em cada dedo, respirarmos a uma só boca, fazer um chamariz à lua cheia e adormecermos no chão da sala, cansados de frenesins e cócegas atrás da orelha.
Entre os frenesins e as cócegas tudo o que se passou dispensa de narrativa. Pois o amor vive-se e não se conta a ninguém.
Acordei por volta das dez com a cabeça a pesar, o sol do dia não presumia nada de novo. Ela nua debaixo dos lençóis. Eu da forma como vim ao mundo, espreguiçando ao sabor da vitória. Cada conquista era mais que uma epopeia: que depois tinha de contar tudo aos amigos. Aliás, para eles esta história acaba aqui. Ponto final. Mas a verdade verdadinha tem mais fio para compor a passadeira.
Então é assim: quando me preparava para pegar nas minhas coisinhas e zarpar, entrou um tipo com ar de toxicodependente a perguntar aonde é que eu ia? Vou-me embora, respondi?
Assim, sem mais nem menos, nem deixa a rapariga acordar, nem pergunta quanto é?! Quanto é?! Respondi eu perguntando. Sim, sim, está aqui a continha: duas garrafas de vodka, dormida e sexo: cento e trinta euros, com direito a mais um copo!
A voz grossa do homem fez acordar a mulher que, sem dizer nada do outro mundo, disse-me: deixa lá, paga que não há-de ser o fim do mundo!
E que remédio tive eu senão o de pagar e ir-me embora recheado de aventuras mas, tesinho como um birote.