Crónicas : 

Monólogo de um menor abandonado

 
MONÓLOGO DE UM MENOR ABANDONADO

Antônio Antunes Almeida

- Sabe... têm certas horas que eu não compreendo certas coisas. Se a vida que é assim, ou eu que nasci errado.
- Olha... eu queria ser também igual a você!
- Gostaria de sorrir da mesma maneira como você faz.
- Queria ser bonito, sadio e alegre. Saber falar igualzinho a você, dizendo para os meus amiguinhos: olha,... o papai trouxe uma porção de presentes para mim, de Nova York!
- Queria tanto ter uma bicicleta! Mesmo que fosse igual aquela que você não usa!
- Sabe... eu tenho muita vontade de ser respeitado, amado, pra falar a verdade: eu queria mesmo era ser tratado como uma criança, que sente vontades e que têm ilusões.
- Sabe... quando vejo você passar para ir à escola, eu sinto um pouquinho de inveja. Mas não é do seu uniforme novo, porque esse eu ainda posso usar; pois logo ele estará no lixo e eu irei recolhê-lo, mas sem que você veja, é claro! Pois tenho um pouquinho de vergonha. A inveja que eu sinto mesmo é que você pode entender as palavras dos cartazes e eu somente compreender as figuras.
- Sabe... eu nunca falei a ninguém essas cousas e nem poderia falar. Pois sou um pivete e poderia acabar internado num desses hospitais de loucos ou até mesmo na Febem. Que Deus me perdoe!
- Mas hoje foi diferente. Dizem ser o dia da criança. Pra falar a verdade eu não entendo muito bem essas cousas.
- Hoje, quando fui à escola da palmeira catar no lixo um pedaço de hambúrguer, ouvi e vi as crianças cantando poesias, recebendo abraços e uma porção de presentes.
- Você não vai acreditar!... Senti uma coisa apertar dentro de mim. Eu acho que é dor de tristeza, porque nunca recebi um presente nem mesmo um abraço.
- Sabe... alguma coisa eu entendo. Poderia até mesmo falar na televisão. Aí eu falaria para todos os Presidentes do mundo; desistirem das guerras, senão elas farão com que eles um dia fiquem iguais a mim: tristes; famintos e sem lares. Eu juro que falaria também, de tal ônibus espacial e muitas outras coisas que eu já ouvi falar por aí, que custa muito caro e que daria para comprar muitos sorvetes, carrinhos e talvez até uma bicicleta nova igual aquela com a qual às vezes sonho.
- Ah! Deixe isso pra lá, não ligue para essas coisas nem me leve a mal, falo por falar!
- Olha... hoje foi diferente mesmo, eu chorei! Mas você não viu, tenho certeza! Vi você chegar correndo em casa e gritar a sua mamãe. Vi também, quando ela tomou você nos braços e o beijou. Foi aí que chorei; porque eu nunca tive uma mamãe pra me abraçar, nem mesmo uma palavra amiga para me consolar em horas difíceis como esta. Devo ter sido abandonado como outros por essas vielas.
- Meu Deus! Anoiteceu e eu nem tinha notado! Foi tão bonito ver você chegar, que eu até me esqueci das horas. Agora, eu também vou para casa dormir! É tão perto da sua que dá pra ver o seu quarto e a sua mamãe acender a luz para cobrir você. Só que a minha casa não tem portas, nem janelas e entra muito frio, lógico! Pois é ali sob a escada do metrô que eu moro!
- Aí, não custou nada e eu já estou também em casa.
- Mas tenho tanta fome! O pior é que começou a chover. Faz tanto frio que as minhas pernas estão fincando!
- Ah! Se eu tivesse ao menos uma coberta, que bom seria!
- Sabe... eu já estava preocupado com você; pois sempre vejo sua mamãe levar todas as noites o seu lanche e depois o cobrir. Beijar seu rosto e apagar as luzes. Só que hoje ela demorou um pouco mais e eu sei como é duro dormir de barriga vazia. Ainda bem que ela chegou!
- Que silêncio incrível! Difícil de acontecer. A não ser este barulho da chuva, nada ouço!
- A sirene da fábrica apitou e eu não consigo dormir. Meu corpo está doendo tanto! Deve ser aquela água suja que eu bebi e que o moço disse ter tal de “cóler”. Algo estranho está acontecendo comigo. É tão esquisito! Não consigo me deslocar. Minha visão está turva, acho que vou desmaiar! Oba! Que bom como dizem por ai: Deus tarda, mas não falta! Daqui a pouco os homens vão me levar para o hospital e terei também uma cama e um prato de comida igual a você, pelo menos por um dia.
- Sabe... às vezes eu me revolto contra a vida, porque a sinto tão vazia! Pois queria tanto que alguém acreditasse em mim, me desse uma oportunidade. Tenho certeza que consigo fazer muitos serviços e poderia até ser útil. Por exemplo: eu poderia vigiar o portão enquanto o seu filhinho brincasse. E juro que não ia pedir para brincar! Porque já me acostumei a sentir prazer apenas vendo outras crianças felizes brincarem. A própria vida me ensinou a retirar das pequeninas coisas, o mínimo necessário para suportar a solidão e o desígnio de ser pivete.
- Mas mesmo assim vou dizer uma coisa: ando meio desanimado de viver! Sempre tão só!
- Pior é que sempre ouço dizer: - "O pivete será o criminoso de amanhã". E isso faz com eu sinta muito mais as amarguras da vida e cada vez mais obscuro o meu horizonte.
- Sabe... eu sinto muita fome e muito frio! Estou regelado! Minha cabeça dói tanto! Minha voz está sumindo! Mas ainda há tempo de pedir a vocês que neste instante, dormem serenos no aquecido e aconchegante interior de seus lares. Só que para mim já não adianta mais! Quem sabe consigam um dia dar um pouquinho de amor para outros iguais a mim, marcados pela mesma crueldade do destino.
- Àqueles que nunca conseguiram compreender o nosso direito a uma digna sobrevivência, farei minhas orações junto ao papai do céu.
- Quero pedir também que os perdoem: pelo pão que não tive e pela coberta que me negaram.
E naquela manhã gélida e sobre aquele concreto frio e mudo; que consumiu as restantes migalhas energéticas daquele pequenino corpo, que conheceu a grande travessia, ficaram: as marcas das lágrimas de dor e de angústia, do desespero da agonia solitária de um menor abandonado.

O autor é advogado e seu e-mail é: antonioantunesalmeida@hotmail.com

 
Autor
AAA
Autor
 
Texto
Data
Leituras
6439
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
8 pontos
8
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
AnaCoelho
Publicado: 01/03/2009 22:52  Atualizado: 01/03/2009 22:52
Membro de honra
Usuário desde: 09/05/2008
Localidade: Carregado-Alenquer
Mensagens: 11255
 Re: Monólogo de um menor abandonado
Este texto está muito bem escrito numa realidade que corta a respiração...

as marcas das lágrimas de dor e de angústia, do desespero da agonia solitária de um menor abandonado.

Um alerta...

Beijos


Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 01/03/2009 23:57  Atualizado: 01/03/2009 23:57
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: Monólogo de um menor abandonado
Um texto arrepiante e brutal!
Pois relata na perfeição aquilo que vai na alma de tantos seres desafortunados que vieram a este mundo ingrato e onde só lhes resta admirar aquilo que nunca terão...

Ontem li algumas das suas crónicas anteriores e aproveito para lhe dar os meus parabéns por todas elas, pois são todas muito boas!


Enviado por Tópico
Marcelo
Publicado: 03/03/2009 13:29  Atualizado: 03/03/2009 13:29
Super Participativo
Usuário desde: 02/02/2009
Localidade: ARUJÁ (SP)
Mensagens: 104
 Re: Monólogo de um menor abandonado
Querido Antônio!!
A frieza na qual relatado, faz do seu texto um alerta a consciência, bem elaborado na simplicidade do artista que és tu, parabéns, e abraços do poeta Zacarelli.


Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 07/03/2009 22:05  Atualizado: 07/03/2009 22:05
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: Monólogo de um menor abandonado
Este seu texto é de levar qualquer coração às lágrimas, pelo que tem de humano, triste e injusto neste mundo. Grande abraço.