Achou que deveria rezar primeiro, assim o fez.
Rezou primeiro para o tio, um índio travesti que tinha o sonho de ir para o Suriname, ser artista de telenovelas, mercado, segundo indígena, pouco explorado no pequeno país. À noite ele cheirava cocaína, com a calça no joelho, sentado na privada, com a porta do banheiro entre-aberta. Ela sentia o cheiro de merda desembocando na cozinha, ao mesmo tempo que ele gritava: "Dar o cu, filha? Eu dou, até dou, mas só se for prum alemão, prum alemão".
Depois rezou para o dono do bar. Nome: Jorge; Idade: 47; Estado civil: casado; Ator favorito: Tarcísio Meira; Escola de samba: Mangueira; Sonho: conhecer à Argentina; Signo: Libras; Marca de carro favorita: Ford; Dia mais feliz da vida: o dia do casamento. No dia cinco de março de 1986 tomou um tiro na testa. No interrogatório, os jurados riram quando ela, a esposa, disse que ele peidava demais.
Incluiu na oração o professor de matemática. Nome: Chânkio; Nacionalidade: chinesa. Usava uma bota vermelha, camisa amarela e cinto branco. Peso: 180 quilos. As costas suavam em abundância, era o rio amazonas que ditava vinte equações, e depois sentava-se na mesa e murmurava: "bosta de vida."
Rezou pra filha que não nasceu, ele tirou o pau, antes de gozar dentro.
A tia-avó, Antônia, portuguesa de Portugal, como a própria tia-avó gostava de deixar bem claro, surgiu-lhe à mente, achou melhor incluí-la também. Surpreendeu-se quando ouviu a tia-avó dizer antes de morrer: "É, Deus! Por que tu me fodestes?!"
Rezou para o galã da novela, que tinha sido vítimas de boatos do vilão. Boatos cruéis diga-se de passagem, seria injusto mencioná-los aqui, aumentaria os boatos. Ela orou para ele, mesmo sabendo que no final a verdadeira história seria trazida à tona, ele casaria-se com a protagonista e teria dois filhos. O vilão iria pedir perdão. Mas para esse ela achou melhor dedicar uma extrema unção.
Orou para um morto sem saber que esse, em questão de segundos, estaria doutro lado. Era o tio Arlindo, que no final da oração da moça — um Credo —, dava a última cagada da sua vida, antes de descer à mansão dos mortos para não ressuscitar. O avião estava no exato momento colidindo com as torres gêmeas.
Pediu a Deus que olhasse para o cara da festa, que ao invés de inspecionar a corda do bungee jumping preferiu cheirar cocaína, atolar o dedo no cu e admirar a revista de homens nus, roubadas da gaveta esquerda da mesa do patrão. Naquele dia o pastor Valmiro, um amante dos esportes radicais, ficou parecendo molho de tomate.
Por fim, orou por você e para Nossa Senhora da Boa Morte, antes de enfiar um tiro no ouvido.