São 10:05 h da noite. É véspera de um dia novo, o seguinte. É prenúncio de mais um bocado de tempo que passa para ser história, como o são todos. Como vão ser todos.
A sala tem uma iluminação flamejante, natural a todos fogos confortáveis... vem da lareira que ilude a geada que se amaga lá fora. O Ramiro escreve.
“Boa noite chama.
Dita assim, é chama
A rabina e ondulante flama
Que se roça no ar
E o lambe com vontade de amar.
Boa noite chama
Feita de nome de luz
Tão claro como a cor que a toma
Tão claro como a cor que seduz.”
Ouve-se o som, um pouco oco, do lápis a raspar na folha de papel enquanto a televisão se nota, em fundo, com o volume baixinho. Passa um programa qualquer. A Noémia, esposa extremosa e teimosa, dormita no sofá abraçada ao infante de cara de anjo. Dorme, também, a cadela numa caixa de cartão bem cheia de mantas.
Entretanto, lá vai mais um tronco para a lareira.
No papel, onde Ramiro escreve, vai crescendo uma história: a sua. Quando se escreve, nasce e cresce sempre a história de quem o faz.
Divaga depois de conseguir tirar os olhos do fogo que ondula hipnotizante...
“Escrever por escrever,
Só por vontade, por apetecer,
Por se sentir que se quer
Da forma que se entender,
De uma forma qualquer,
Escrever o que se quer dizer,
Como se aprende a aprender,
Como se abre um livro para ler...
Enfim...
Escrever porque sim
Sem objectivo afim
Só para estar assim...
Bem vivo em mim.”
... e revê-se na divagação.
Tempo houve, em que lhe era penoso pôr por letras o que lhe ia na alma e na cabeça mas, fazia-o mesmo assim, como se disso dependesse a sua vida. Penoso mas necessário. Já não lhe custa. Corre-lhe tão naturalmente como sangue.
Na sua casa, aquela em que se sente bem e onde sabe que os seus também são felizes, a inspiração está impregnada nas paredes e leva-o, muitas vezes, a pensar se as coisas em que não acredita podem ser realmente verdadeiras.
Detem o passo a cada olhar
como se, por aqui, quisesse ficar
sentado numa cadeira de pés presos
ou em montanhas de sopés tesos...
ou, talvez, em cadeiras cavadas em montanhas
que não se põem de pé por falta de sopé...
Ora mas se detem o passo sem manhas
e não se detem por coisas estranhas,
porque será, então? Porque será?
Por certo por algo que se dirá
que lhe aquece a forma de ser
num jeito que se tem que merecer.
A fé no que não se apalpa ou vê, nunca foi algo que lhe sustivesse o jeito ou lhe prendesse a respiração. Não é céptico nenhum mas, também... que raio! Porque é que haveria de fazer depender a vida do que só se pensa ou imagina? E depois, até pensa e imagina... e até acaba por depender disso, pois então. São coisas de uma lógica natural. Não era legítimo que fosse diferente, afinal a conversa acaba sempre quando se encontram iluminados com certezas ou qualquer diferente, que o é por vocação auto-infligida. Talvez mesmo, fingida.
Numa forma que não é verdade nem mentira, lá vêm as crenças a encaminhar tudo por veredas, mais ou menos, marcadas. É o tal destino. O inevitável que parece acontecer sempre que se tenta evitar.
Ramiro não é um perito em assuntos de fado e de predestinações mas... enfim... é alguém que questiona, que se questiona, afinal de contas não se tem por mais um carneiro.
No meio disto, a saudade faz parte. É resultado de destino cumprido, de fado ido...
recorda-se do tacto macio do veludo
num toque com retoque de saciedade
que descreve com laivos de arremedo...
ai como é verdade a palavra saudade
soubesse o mundo da vida devida
aos mortos deitados num caixão
e, a memória da macieza era lida
nas linhas da mais doce descrição...
É difícil não trilhar estes traçados da memória e pensar que, afinal, tudo estava desenhado desta forma. Tinha que acontecer assim. Entram os “ses”. Se não tivesse dito aquilo, se não tivesse feito isto, se não te tivesse visto. É inevitável. Quase que se cria uma obcessão por todas sucessões de hipóteses que começam a vir de catadupa. Se isto, se aquilo, se fosse, se não...
É quase meia-noite, faltam dois ou três minutos e ele continua a escrever.
O Ramiro é um homem gaiato agarrado ao seu brinquedo, à laia de quem depende dele para viver a meninice. Por vezes, muitas vezes dá-lhe para rir. No meio dos devaneios que lhe fervem no sangue e no sentido, é atingido por inevitáveis ataques de sorriso, de riso, de risota. A esposa levanta sempre o sobrolho como se tentasse perceber o que é que estava para ali a acontecer. Compreendia mal aqueles “ataques”. A Noémia é mulher de poucos floreados e com um sentido prático que arruma a canto qualquer poesia. Uma frustração mas, também e sem sombra de dúvida, ela acaba por ser o fiel que equilibra tudo.
Por vezes aborrecia-se com ela e despejava...
“Não me meçam a vida com uma régua
Nem a pesem com uma balança
Enquanto se souber que conhecer a verdade
É insónia carregada da mais dura realidade.”
... mas logo...
“Sabemos que sabemos
Em dizeres que dizemos
Por sentimentos extremos
Que nos atam um ao outro”
Depressa se cobria a distância entre os dois, que chegava a parecer deveras grande, tão grande como as frases todas que se dizem nos discursos e nas conversas pouco importantes. Logo se percebia que nunca tinha havido distância, que os dedos dele lhe podiam tocar a face e tornear as maçãs do rosto sem grande esforço.
O alívio era tão grande como o medo. Sempre tivera um receio desmesurado de ficar sozinho, de acordar de manhã e não ver mais nada que não fosse o resto da cama. A perspectiva de lhe faltar o colo aconchegado, o carinho... só essa possibilidade, matava-o de morte real.
Houvera providência e nunca tal teria acontecido.
O Ramiro olha para o relógio e repara que o novo dia é já recém-nascido.
- Chega por hoje. – sussura num suspiro.
Acorda a mulher com um toque leve no ombro, que envolvendo o petiz com os braços, se levanta do sofá. O catraio nem dá sinal.
Encaminham-se todos para a cama. Daí a umas horas estará tudo a pé novamente. São as rotinas necessárias para se viver em sociedade. Obrigações.
Mesmo sabendo que Noémia era pouco dada a poesias, deixou-lhe o último escrito da noite em cima da mesa. Ela iria lê-lo de manhã depois de acordar. Ele sabia que bem lá no fundo aquilo tocava-lhe, embora ela não o mostrasse.
“Cubro-te de penas brancas,
De histórias de mistério e de imaginação,
Das loucuras da lua e outros encantamentos,
Só para te ver voar em redondas danças
Cheias de voltas de prender a respiração
Em todos os momentos, em todos os movimentos.
Dou-te canções na mão
Com letras vivas e perfumadas
Embrulhadas em conversas de amor,
Só para te ver no meu coração,
Enfeitada de rosas lidas e faladas,
Colhidas vivas em noites de calor.
MJMS
A boa convivência não é uma questão de tolerância.