QUANDO A MÚSICA É MAGIA
O Sol despede-se na linha do horizonte. Não esteve nos seus desígnios em relação a este dia ser grandioso. Mas porque o encanto existe, os nossos olhos observam-no até ao derradeiro dos raios, numa despedida carinhosa, como quem garante que no dia que vem cá estará a avalizar-nos um equilíbrio que de outra forma seria apocalíptico. Pareceu preferir ser discreto, deixar-se extinguir serenamente, mas sem consentir que se afectasse o encanto do fim de tarde. Mas porque o deslumbramento apesar de tudo existe, olhos há que não o deixam passar despercebido. É o caso de Erika. De repente fica com a palha de aço na mão, indiferente à escrigidez com que estava a encarar a limpeza da bacia de zinco que segurava na outra mão. É instantâneo o gesto, suficiente para um lampejo existencial. Erguendo-se e alargando de novo o olhar para o infinito, pensa: - uma vez há-de ser a última, Deus sabe quando. Reflecte na grandeza das coisas e no nada que ela tem que ver com a riqueza ou opulência que via de regra seduzem o homem. Este tipo de paragem no tempo, como o interpreta, não é novo para Erika, mas quando acontece enche-lhe a alma.
É quase meia-noite quando vai deitar-se. Quando se prepara para adormecer na sua modesta e isolada casa das alturas do Soajo, sente-se despertar por um tropel de passos no lajedo e discretas vozes de gente. Esboçam-se uns acordes e bastam alguns segundos para que Erika recorde que é noite de Reis, pelo que logo entende o que vai passar-se. Assalta-a a intuição de que algures estaria escrito que o dia de hoje haveria de ser rico.
O arranque melódico é feito pelo bandúnion que Erika identifica, mas é a harmonia das vozes que a chama ao real. Num impulso senta-se na cama, numa atitude de quase oração. Deixa-se emocionar. É que se a letra é do idioma português, a melodia diz-lhe profundamente respeito, fala-lhe do seu mundo, dum tempo que lhe é remoto, mas inscrito na sua pessoa em diamantinas letras. Nem mais nem menos «Lilli Marlene», essa melodia que sempre lhe foi mágica ao falar-lhe da Guerra e do facto extraordinário de ter sido uma espécie de hino de ambos os lados das trincheiras.
Escutar Lilli Marlene,(na voz da propria Marlene Dietrich) a sua toada nostálgica e mágica, arrebata-a no mundo da saudade, infinita saudade, apesar de caldeada no fragor da Guerra. Paradoxos não fáceis de entender, adormece sentada na cama com sons celestiais a regurgitarem-lhe numa mente adormecida mas a soletrar-lhe o sentir profundo de que as coisas simples são muitas vezes a voz do Criador.