QUANDO A REALIDADE DOER
Pela trilha inescrutável da vida, somos um caminheiro afoito à procura do ouro vil. Quantas vezes burlando nossa própria consciência embrenhamos no nefasto mundo da hipocrisia, na mais esquálida fonte de onde jorra o suor dos justos. Quantas vezes, somos os mendigos em nossas próprias mansões, na fabulada impressão que causamos quando estendemos as nossas mãos ao esfaimado e depois subimos ao pedestal da fé, para pedirmos bênçãos pelos nossos atos de caridade. Aí, então, completamos o mais hediondo ciclo dessa trajetória de homem abjeto, que acabamos de ratificar, pois tentamos fazer de nossa bíblia o passaporte para o céu.
Quantas vezes sentimos pena de nosso cãozinho e o trazemos para dentro de nossas casas, nas frias noites de inverno e nos esquecemos ou fingimos esquecer nesta gélida noite, do febril indefeso, revolvendo-se em pesadelos, ou quem sabe, agonizando pela atrocidade da fome, no miserável leito por aí, sob uma tapera. sem ao menos um fatacaz de pão que certamente transborda em nosso cesto de lixo, nem sequer um farrapo de pano para se cobrir, concomitantemente nosso cãozinho se perde nas felpas do macio e maravilhoso carpete.
Então, nós nos entendemos. Começamos a nos compreender, a sentir que somos um abutre à procura da inerme caça. Tudo isso somos nós.
Quantas vezes trocamos o altruísmo pelo egoísmo, e nesta manobra maquiavélica, impingimos ao nosso semelhante uma grotesca ordem, que humilha e maltrata o seu ego.
Quantas vezes vazamos pelas malhas da virtude para cairmos conscientes nos poços do egocentrismo. e neste reflexo incontrolável de ganância desprezamos a fênix da tolerância e, já descontrolados caímos na enxovia de nossas próprias razões.
E, quando, na farta mesa de nossos lares, rejeitamos o opulento caviar, e maldizemos arrogantemente, no entanto, aguardam-nos pacienciosamente à soleira de nossa porta, aquele esfaimado, mendigando apenas as migalhas restantes em nosso prato. Além de negarmo-lhe, ainda, o maltratamos exigindo a sua retirada, com medo de afetarmos a nossa residência. No entanto, nós, nos esquecemos de que: o que macula não é o seu infortúnio e sim a fortuna mal adquirida que dói a todo instante em nossa consciência, e faz com que fiquemos cada vez mais irados frente àquele que sofre, pois se não lhe tivéssemos tirado o tracanaz a que tinha direito pelo arbítrio de nossa prepotência, jamais precisariam estar nos implorando, e nós jamais sentindo: que a parte que nos sobra é exatamente aquela que lhes falta.
" suum quique tribuere " ou dai a cada um o que é seu.