Domingo tarde, a chuva insistia em cair e o vento parecia querer derrubar tudo à sua passagem. Sentado no sofá Lucas acabava de almoçar, há muito que se habitou a comer em frente á televisão, sente-se acompanhado para além de não ter de se dar ao trabalho de pôr a mesa. O olhar vago, o sorriso esbatido e o pensamento ausente, nesse momento Lucas está algures que não ali, leva à boca o último pedaço de maçã e por momentos apetece-lhe enrolar-se e hibernar como um urso… quem sabe talvez quando acordasse as coisas fossem diferentes ou pelo menos ele se sentisse diferente.
Lucas sente-se estranho, um misto de tristeza com apatia, como se nada fizesse sentido, como se a vida não tivesse nada para lhe oferecer, como se os comentários constantes ao seu eventual envolvimento com esta ou aquela o fizessem sentir como se não houvesse lugar para ele no barco do amor. Era assim desde que Laura o deixara no altar, a meio do casamento para fugir e viver o seu grande amor com um velho colega de faculdade, o mesmo que ele ingenuamente convidara para padrinho do casamento que ele acreditara ser para toda a vida.
Lucas era um jovem médico, promissor e tido por muitos como a grande esperança na ortopedia, o seu sorriso aberto e ar jovial facilitavam a convivência com ao pacientes e facilitavam também os constantes rumores relativos a romances e envolvimentos românticos. Desde que conhecera Laura a sua vida sofrera uma transformação. Ela era tudo o que ele queria na vida, uma mulher bonita, inteligente, independente e capaz de o levar a cometer as maiores loucuras, ela era o contrapeso na balança, era quem lhe fazia despertar um lado mais despreocupado, mais jovial, mais louco. Por ela era ia ao fim do mundo e voltava, amava-a como nunca amara ninguém e isso era evidente aos olhos de todos e ela amava-o… do seu jeito estranho e pouco ortodoxo mas amava. Conheceram-se numa tarde chuvoso de Outono quando ela chegou às urgências do hospital com um pé partido fruto de uma aventura que envolveu um skate, chuva e uma bicicleta. Lucas não se importou com os detalhes, a sua missão era ajudar aquela jovem de olhos castanhos e de cabelo aos caracóis que escorria água da cabeça aos pés mas que não se queixava nem perdia aquele sorriso que iluminava a sala como o sol da manhã. Ali, naquele momento o futuro de ambos era traçado sem que nenhum deles o soubesse. Ali começava uma história de amor cujo final era imprevisível.
Laura não chorara, não gritara, não soltara um único gemido enquanto lhe faziam os exames, nem enquanto Lucas lhe engessava a perna, nem quando no consultório ele lhe deu as instruções que devia seguir para uma rápida recuperação sem mazelas. Ao sair olhou-o nos olhos e esboçou um sorriso:
-Até breve Doutor. Espero vê-lo quando voltar daqui a um mês.
- Combinado. – Retorquiu Lucas comedido.
O tempo passou e Lucas não conseguia tirar aquela mulher do pensamento, aqueles olhos tinham lançado sobre si um feitiço, um encantamento que o fazia sorrir na rua sem motivo.
- Será possível ter-me apaixonado por uma desconhecida? – Perguntava a si mesmo e chegava sempre à mesma resposta: que idiotice!
No dia marcado lá estava ela. Mais linda do que ele se lembrava. Os caracóis emolduravam-lhe o rosto, o sorriso iluminava-o como um sol e aquela blusa azul fazia sobressair a sua beleza.
- Viva Doutor! Disse-lhe que voltava – disse rindo.
- Estou a ver que sim. – Respondeu embaraçado E esse pé que tal?
- Já não me dói. – Disse ela olhando-o fixamente.
- Vamos lá ver isso, então. Por aqui por favor.
No gabinete Lucas, retirou o gesso com o cuidado e a minúcia de sempre, examinou os novos exames, certificou-se que estava tudo bem e por fim dirigiu-se a ela:
- Muito bem Laura, está tudo bem. Mas tem de ter algum cuidado, nada de aventuras radicais nas próximas semanas e sobretudo cuidado com as aventuras de skate, sim? Não quer voltar aqui pelo mesmo motivo pois não? – Disse esboçando um sorriso.
- Não vejo porque não, afinal um médico assim tão giro não se encontra todos os dias. Disse ela, rindo da expressão aflita dele e sobretudo do facto de ter corado como um tomate.
- Ora. Então… está a tentar embaraçar-me? Olhe que lhe volto a pôr o gesso…
- Desculpe. Sou mesmo assim, meio desbocada. Digo antes de pensar… não me leve a mal, por favor.
- Muito bem… creio que a posso desculpar, se me prometer que vai ter cuidado, ok?
- Prometido Disse enquanto se levantava e vestia o casaco. – Ainda falta muito para acabar o seu turno? – Perguntou.
- Na verdade já acabei. Só preciso preencher uns papéis e acabou.
- Óptimo… assim posso convidá-lo para beber um café e tentar remediar a má imagem com que deve ter ficado de mim.
- Não. De maneira nenhuma. Respondeu atrapalhado.
- Não de maneira nenhuma ao café ou à má imagem? – Perguntou sorrindo.
- Desculpe… provavelmente devia dizer que não às duas coisas, mas vou aceitar o café… isto se esperar uns minutos.
- Claro.
Lucas acabou de preencher os relatórios do dia, passou o serviço ao colega que o ia substituir e dirigiu-se ao vestiário onde trocou a bata por um blusão castanho, arrumou as coisas, pegou no saco e saiu. À porta Laura esperava-o.
- Ena! Quase não o reconheci assim vestido como as pessoas comuns. Mas devo dizer que fica muito bem sem bata. Brincou.
- Desculpe a demora.
- Não tem importância. Vamos?
Seguiram a pé até um café ali perto. Era um espaço pequeno, aconchegante e sobretudo emana uma sensação de à vontade. Sentaram-se numa mesa junto à janela. Lá fora começava a chover, o cheiro a café inundou o espaço misturando-se com o aroma a bolos caseiros e com o burburinho das conversas. Pediram café duplo, sem açúcar, com um toque de canela… ambos o preferiam assim e uma fatia de torta de morango e limão. E ali ficaram… os dois a conversar como se fossem amigos desde sempre e como se não houvesse mais nada nem mais ninguém no mundo.
E foi assim… foi assim que durante os meses seguintes ambos passavam os finais das noites que ambos tinham livres. Foi assim até ao dia em que Laura e Lucas decidiram viver juntos, repartir o mesmo espaço, a mesma vida. E correu bem. Tudo foi magnifico até ao dia em que Lucas começou a falar em casamento. A partir desse dia Laura ficou um pouco mais distante, Lucas deu-lhe espaço, compreendeu, acedeu esperar. E esperou. Esperou até ao dia em que ela aceitou.
Foi o dia mais feliz na vida de Lucas, finalmente aquela mulher seria sua para sempre, como nos contos de fadas e nas histórias que a mãe lhe lia em pequeno. Iniciaram-se os preparativos, marcou-se a data, marcou-se a igreja, a hora, enviaram-se os convites e compraram-se os fatos. Estava tudo a postos.
Naquela noite Lucas sentiu-a diferente, perguntou o que se passava e ela respondeu apenas que estava nervosa… ele beijou-a, disse-lhe que estava tudo bem, que ele estaria sempre ali para ela, que nada podia correr mal e ela beijou-o… beijou-o com paixão e aninhada nos braços dele adormeceu. Lucas ficou ali, olhando-a, vendo-a dormir e a pensar que era assim que queria acordar todas as manhãs: com ela ao lado.
A igreja estava linda. As flores em tons de terra lembravam que era Outono. Os convidados chegaram um a um e tomaram os seus lugares. Os padrinhos de Laura tomaram o seu lugar no altar, Lucas esfregava ansiosamente as mãos… Mateus o seu padrinho ainda não tinha chegado… e de repente o órgão começou a tocar, a porta abriu-se e Laura avançou para o altar. Ao vê-la Lucas esqueceu o nervosismo… Laura estava deslumbrante! Sem o sorriso aberto do costume ela avançou até junto dele, ele pegou-lhe na mão e ficaram assim lado a lado de mãos dadas junto ao altar.
- Laura, aceita este homem para seu legítimo esposo A pergunta do padre atingiu-a como um raio. De repente tudo parecia estar a andar à roda…olhou em volta, as pessoas olhavam-nos com desvelo, Lucas sorria… mas ao aperceber-se da demora na resposta o sorriso foi-se extinguindo e um friozinho apoderou-se do seu estômago.
-Laura? – Chamou – Laura? Está tudo bem, amor?
- Hã? – Perguntou ela como se nada daquilo fizesse sentido.
- Laura? O que é que se passa contigo?
- Desculpa…- disse quase num murmúrio – Desculpa!
- Laura, o que é que se passa? – Perguntou preocupado.
- Desculpa, desculpa… não me odeies, por favor, mas não posso fazer isto.
- Isto o quê, Laura?
- Isto Lucas, isto! – Gritou não posso casar contigo! Por favor não me odeies!
- O quê? – Lucas estava incrédulo, não podia casar com ele? Mas porquê?
- Não me odeies… por favor não me odeies. Mas não posso… não posso. Desculpa… olhou-o com os olhos rasos de lágrimas e antes que pudesse fazer algo já ela corria pelo corredor em direcção à porta onde a esperava… Mateus!
Abanou a cabeça. Aquele pensamento atormentava-o desde que Laura desaparecera sem deixar rasto, sem dar notícias, sem uma palavra, sem uma explicação. Desde esse dia que Lucas se sentia assim… sentia uma mistura de tristeza com apatia e por vezes uma fúria imensa, por não saber o que acontecera. Desde aí que de vezes quando corriam rumores de envolvimentos com enfermeiras que supostamente o tentavam consolar, mas a verdade é que depois de Laura não houve mais ninguém… nem s sério, nem por uma noite ou umas horas sequer. Desde esse dia Lucas nunca mais esteve com ninguém… como poderia? Como poderia correr o risco uma vez mais?
Pousou os talheres. Olhou para a rua… lá fora o sol espreitava por entre as nuvens. Levantou-se.
- Chega! Chega! Chega! – Gritou para si mesmo - Chega de te sentires um miserável, afinal não fizeste nada de errado. Chega! Está na hora de voltar à vida. Está na hora de parar… Lucas.
Levantou-se, pousou o tabuleiro do almoço em cima da bancada, trocou de roupa, perfumou-se, pegou nas chaves do carro e saiu de casa rumo ao cinema. Escolheu a sessão das 14H00, àquela hora por certo não haveria muita gente e podia apreciar o filme sossegado. Dez minutos depois estacionou no parque do cinema, entrou, dirigiu-se à bilheteira, pagou o bilhete e dirigiu-se á sala… sentou-se e esperou. O filme começou… uns minutos depois sentiu que alguém se sentava a seu lado… sentiu o cheiro do perfume… reconheceu-o de imediato. Era o perfume de Sara. A sua grande e fiel amiga Sara, que esteve a seu lado em todos os momentos, que nunca o abandonou, que ficou e lhe segurou a mão quando a igreja ficou aos poucos vazia e sem ninguém naquele dia, que desde então o encorajava, o ouvia, lhe atendia o telefone às horas mais estranhas da noite. Olhou-a e sorriu.
- Por vezes buscamos em todos os lugares o que está ao alcance da nossa mão. – Era essa a tradução que aparecia no ecrã… e foi isso que de repente Lucas percebeu. No escuro tomou a mão de Sara… ela olhou-o com um sorriso e encostou a cabeça no ombro dele. E ficaram assim… de mãos dadas no escuro do cinema, a cabeça dela no ombro dele e os olhos dele presos no futuro que se adivinhava junto daquela que afinal nunca deixara de ser a mulher da sua vida apesar de só agora ele a começar a ver.
Agora Lucas sabe. Agora ele sabe que o amor é feito de pequenos nada, de gestos insignificantes, de momentos pequeninos que parecem não ter valor mas que são os únicos capazes de trazer a vida de volta a um coração partido e agora sabe que por vezes basta olhar em volta e esticar a mão para alcançar o que toda a vida buscámos noutras paragens. Agora Lucas sabe que a vida é amar para além de amar, é dar, dar, dar e depois receber. Agora Lucas sabe que ser feliz está nas mãos de cada um… basta acreditar!
HP/