Foi num dia em que, se não fosse o final da história, teria sido especial.
Nunca fui de muitas sortes nem tão pouco de tantos azares.
A vida corre sempre igual e eu já me habituei a que assim seja. Um passo para aqui e dois para acolá.
Era uma manhã com um nevoeiro um pouco menos que cerrado, a minha cara meia estremunhada pela noite mal dormida, as minhas pernas acusavam inícios de cansaço causados pela...bem, acho melhor não dizer.
Seguia eu pela avenida fora. Seguia o caminho dos que passam o tempo a preocupar-se com a posição do sol para não chatear muito o corpo mal habituado.
Ao longe, vejo uma rapariga bem esticadinha, pescoço nu, blusa com dois ou três botões desapertados, com um ar estudantil, de quem quer aprender algo mais do que os livros da escola. À medida que me aproximava, a sua beleza chamava-me. Ou parecia que me chamava.
Há dias em que as miragens me parecem verdadeiras. Mas, mantenho sempre a dúvida como hipótese. De facto não, ela acenava para mim. Como pode?! A chamar por mim! E eu que pouco tenho dado à sociedade, que nunca me livrei de relatos mal contados sobre a minha pessoa relacionados com zaragatas e empréstimos pontuais! Não pode ser!, pensava eu com os meus botões de metal ferrugento!
No entanto, a uma boa dúzia de metros, a minha certeza estava certa, como quem diz: a rapariga está mesmo a chamar por mim. Ui! Que terei eu de especial nesta manhã?! Exclamava eu baixinho como se tivesse um grilo dentro do bolso do meu casaco a quem dar de comer! De facto sim, ela esperava que eu me chegasse bem perto dela.
Porventura está perdida aqui nesta ciadade ou quererá uma informação sobre que direcção há-de tomar para ir para a outra ponta da cidade. Ou não. Ou, talvez, hum, sabe o que eu quero dizer, não sabe? Uma miúda, cheia de entusiasmo, com vinte e poucos aninhos a subir-lhe pelos cabelos, por enquanto lisos, andar desinibido, sem pai, talvez, sozinha neste mundo, sem voz amiga para lhe elogiar o peito crescido. Pensava eu na minha moral de simplório vivant.
Já tinha ouvido falar por amigos meus que tais situações acontecem. Pelo menos uma vez na vida. E, sortes assim, há que aproveitar! Outra coisa, prostituta não era, porque essas, dormem até mais tarde.
Endireitei os colarinhos duma camisa que me custou um quinto do salário, dei um jeito ao casaco que me fora oferecido no Natal de 2003, olhei os sapatos e vi que estavam em condições, respirei fundo e, finalmente, cheguei perto dela, com o meu ar característico de sonhador nato. Tão perto que, se viesse mais um pouco de vento pelas minhas costas era capaz de a beijar mesmo ali.
Ela olhou-me com encanto tal que eu, mais um bocadinho a fixar-lhe os olhos, ficaria tal serpente encantada. Nunca me acontecera um cenário daqueles.
Aliás, nem me vou adiantar mais com pormenores e vou passar à conversa propriamente dita. Então foi assim. Soltou um olá com todas as letrinhas, a sua boca abriu-se em câmera lenta e eu, respondi-lhe em igual teor sentimental.
Começou por me falar das sucessivas greves do país, o que estranhei, mas, ainda assim, acompanhei-lhe o raciocínio. Inteligente que a miúda era!, intuí eu no meu passo doble mental esperando que a cartada do convite para ir a casa dela acontecesse nos entretantos.
Depois, cravou-me um cigarro, eu dei-lhe e pensei "isto está correr bem!". Falou-me de outras coisas que eu, sinceramente, não fiz caso, uma vez que a minha atenção estava compenetrada no seu colar com uma pedra reluzente e achatada que, com certeza, lhe esfriava o peito.
A minha imaginação atingia assim os trópicos e sub-trópicos.
Os minutos esvoaçaram.
O nevoeiro sumiu-se num clique.
Pessoas passavam bem perto de nós e eu, nem xi nem mi.
O destino tem destas coisas e eu já merecia isto há muito! Ao fim de um breve questionário sobre o que faço e o que não faço, eis que chega o momento.
A miúda convidou-me a entrar numa porta mesmo ali ao lado. E eu, como sou de raça pura, aceitei, sem meio mas.
Ela foi na frente, e eu, numa legítima marotice, tentava despi-la mentalmente. Pudera!, aquele pedaço havia de dar para muitas refeições! Depois de ter entrado por uma porta que se encontrava aberta, chiça!, deu-se o pior do acto da cena.
Saiu de uma outra porta um fulano bem engelado, que eu esperava bem que não fosse nem pai nem tio dela, estendendo-me a mão com um sorriso de criar vítimas a sério.
Mandou-me sentar e eu sentei.
Mandou-me pôr vontade e eu pus-me.
Depois de ter mexido nuns papeis que tinha em cima da secretária, assinando outros que estavam agrafados, voltou-se para mim e disse:
- Então o senhor quer fazer-se sócio de uma comissão de trabalhadores?! São só quinze euros!
Ups! Ouvido isto, fiquei emudecido por uma longa fracção de segundos.
Olhei bem o interior da casa, avaliei a situação da porta que, miraculosamente, se fechara num abacadabra, avistei a cidade pela janela e, já a miúda estava lá em baixo na rua dar boas vistas a outros tipos distraídos como eu.
O que me valeu foram os quinze euros que havia pedido emprestado ao tipo que me traz o correio a casa. Que se dane!, quinze euros era capaz de não chegar para os curativos! Melhor assim.
Posso até não contribuir para a produção nacional, mas pelo menos ninguém me pode dizer que não zelo pelos trabalhadores!