O rapaz sente dentro de si um mar que parece explodir para o céu a meio, como que repuxo de dois oceanos que se entrechocam, saboreia a excitação do mundo que o espera duas horas adiante de si, prova do suor das batalhas que irá travar consigo, os projectos são irrelevantes, o que interessa é superar-se a si próprio, é transcender o que era ontem e ser o amanhã hoje, é mostrar a todos a sua imponência cognitiva, a sua majestade cerebral, a sua grandiosidade genial, já sente a adrenalina, já antevê o sangue a correr aceleradamente nas veias, o brilho enfiado nos olhos, o sorriso no canto da boca, as palavras acertadas de triunfo na resolução de mais um enigma, de mais uma dúvida, de um projecto que sem ele estaria atascado indeterminadamente nos lamacentos carreiros da mente comum, este é o oceano que corre numa direcção, contra ele esbarra um outro que lhe traz aos lábios uma água de sabor amargo, uma insegurança, um coração desocupado de afectos, uma alma desabitada de qualquer amenidade humana, terá sido uma rapariga loira que ficou ignorada numa estação, terá sido uma mãe de catorze anos que foi atirada para a irrelevância do esquecimento, sente-se a transferir uma vida para dentro de si enquanto se descarta da anterior, é cobra que muda de pele, mas a nova não surge ainda e a velha já se liberta, está ele nu, débil e frágil, como bebé de carne tenra, neste momento é como se existisse em coma, já não vive a vida que viveu, ainda não vive aquela que viverá, está numa ponte entre as margens que são a sua existência, ele olha para um lado e vê lá uma vida, olha para o outro e vê lá uma outra vida, onde estará ele que tão bem vê estas existências mas vive como se não fossem elas dele, como se não existisse ele já ou ainda, será o vácuo interior, o deserto identitário, todo ele é um ser oco, desguarnecido, destituído de miolo, comido de todo o conteúdo, é como um poste de electricidade, por si passam cabos que conduzem uma energia viva, mas ele não passa de uma estaca de madeira morta, viaja num avião climatizado, em bancos de pele, uma obra clássica baila no stereo, mas por dentro subitamente sente-se como uma criança despida, o calor solta-se da carne com o passar da noite, dentro de si ele dorme enrolado num chão frio de azulejo.
Não precisas de responder às tuas questões. Precisas é de questionar as tuas respostas.