Era noite alta. Eu dormia, quando, de repente, a mãe me acordou, gritando:
- Vai pegar as suas coisas que nós vamos pra dentro da mata, pra parte mais alta, onde é mais seguro!
- Por quê? - perguntei
- Faz o que eu estou te mandando, menino, não reclama! – respondeu.
- Mas mãe! – tentei argumentar. Ela então complementou.
- Vai logo e solta todos os animais, que está vindo coisa feia pela frente!
Comecei então, a arrumar minhas coisas, e ela me apressando, dizendo que era pra eu pegar as coisas que pudesse levar, pois tínhamos pouco tempo. Soltei os animais e vi que o tempo estava calmo demais, a mata estava num silêncio total. Foi aí que percebi o porquê de tudo aquilo, era a pororoca que vinha, e ela vinha violenta. A princípio eu não ouvira o barulho, mas agora sim, já dava pra ouvir ao longe. Fiquei preocupado, nunca vira minha mãe assim, mas segui seus conselhos. Com a pororoca não se devia brincar. Como nossa casa ficava bem na beira do Igarapé, e ele tinha o leito raso, estávamos sujeito a ser arrastados pela força da águas pororoca que, quando chegava, não respeitava nada. Ela entrava em todos os lugares, vinha derrubando árvores, quebrando, afundando embarcações, abrindo furos, amedrontando os ribeirinhos, arrastando as redes dos pescadores, enfim, destruindo tudo mesmo!
Pegamos nossas coisas e fomos, então, correndo pro meio da mata, pra parte mais alta de uma pequena montanha que se elevava na parte de trás do quintal da nossa casa, esperar que ela passasse.
- Está com medo, menino? – perguntou minha mãe.
- Não! Estou não! – respondi, com um medo horrível, mas não dei o braço a torcer.
- É, estou percebendo, mesmo. – redargüiu a mãe, e nos pusemos a rir da situação. Nós dois estávamos lá, no meio da mata, tremendo que nem açaizeiro no meio da tempestade.
Fiquei pensando comigo, já tinham me falado que em cima da pororoca vinham montados três irmãos, o ***Lin, o Nonô e o Bita, que, por eles terem sido tragados e mortos por uma forte onda, vinham agora se vingar dos vivos, causando toda sorte de estrago aos ribeirinhos e a quem se metesse no seu caminho. Perguntei então:
- É verdade, mãe, que vem gente montada em cima da pororoca?
- É o que dizem os mais velhos. Eu, na verdade, nunca vi.
- Sei. – disse, e fiquei ****matutando comigo.
Ficamos em silêncio. Era noite de lua alta, estava tudo claro, um vento forte tinha começado a soprar, quando nesse momento, depois de uma longa espera, um barulho muito forte se fez ouvir, como que ribombando que nem trovão, e foi ficando cada vez mais alto e mais forte e as águas vieram, e violentas, num ímpeto atroz, começaram a invadir as ribanceiras onde estava nossa casa, arrancando e arrastando ela como se fosse uma folha de papel. Era uma onda muito alta, de uns quatro metros de altura. Depois que passou, vieram os “banzeiros”, as ondas menores que foram varrendo a terra dos barrancos até morrerem na praia.
Quando da passagem da onda mais alta, tomei coragem e olhei pra “*****cabeceira” da pororoca, pra ver se vinha alguém em cima dela. Nesse momento, o luar iluminou uma cena insólita, e confesso que quase não acreditei no que vi naquela hora! Era um ******boto cor-de-rosa que vinha numa prancha, todo *******pimpão, surfando na pororoca!
Notas do Autor
*Pororoca – é um fenômeno que ocorre na Amazônia, principalmente na foz do rio que corta toda sua extensão, o grandioso rio Amazonas. No Amapá, ocorre na “Boca” do Araguari, no canal do inferno da Ilha do Maracá, na ilha do Bailique. Ocorre no Estado do Pará também, e em outras partes. Esse fenômeno acontece nos mês de janeiro e vai até o mês de maio. O vocábulo POROROCA vem de POROROKA, da língua tupi, que significa ESTRONDAR.
“**Causo” – para os ribeirinhos que vivem na Amazônia, “causo” é uma história que é contada e, por ser tão inacreditável, não se sabe se é verdade ou não.
***Lin, Nonô e Bita – segundo a lenda da pororoca do Estado do Amapá, eram os três irmãos que morreram afogados quando uma forte onda afundou a canoa em que se encontravam.
****matutando – pensando, ponderando...
“*****cabeceira” – onda principal da pororoca.
******Boto cor-de-rosa – mamífero cetáceo que vive nos rios da Amazônia, conhecido também como golfinho. Segundo a lenda, em noites de festa, transforma-se num garboso rapaz, todo de branco, e se insinua para as moças, seduzindo-as.
*******pimpão – orgulhoso, vaidoso...